O projecto de lei da deputada Cristina Rodrigues, que propõe a extinção das corridas de touros e a transformação das praças em centros culturais, é o corolário de uma escalada recente de contestação à festa brava. O documento é revelador da ambição dos animalistas em moldar as consciências com recurso à força da lei, uma “política do espírito” pouco consentânea com uma sociedade livre.

Bem mais do que o resultado de uma diferença na experiência relacional entre humanos e animais em meio urbano e em meio rural, eminentemente afectiva no primeiro e funcional no segundo, a causa do bem-estar animal está viciada por uma distorção moral de base: a cultura hedonista e individualista característica da contemporaneidade reduziu a condição humana, como bem refere o filósofo Anthony O’Hear, à procura do prazer e à evitação da dor, em suma, a um “mínimo denominador comum” que, partilhado por humanos e animais, tem como corolário a integração destes na “comunidade moral”,  tornando-os titulares de direitos (After progress. Finding the old way forward, 1999, p. 9). Assim pensam, por exemplo, de acordo com uma recente sondagem, 40% dos britânicos.

No caso dos animalistas, a distorção é ainda mais acentuada, pois revertem a hierarquia de valores em favor dos animais. Comungando da obsessão pós-moderna pelas relações de poder, transpõem este raciocínio dicotómico para as relações entre espécies, atribuindo aos humanos o papel de opressores e aos animais o de oprimidos, o que faz destes merecedores de favorecimento e especial protecção, como condição da cessação da exploração dos segundos pelos primeiros. Assim sucede, como adiante se explica, com o presente diploma.

Sobre a tauromaquia, recai também um histórico preconceito. Conotada com o Antigo Regime, foi vítima colateral dos regimes autoproclamados de progressistas, que consideravam incivilizado tudo o que não era moda em Paris.

Não é por acaso que a mesma pena que assinou o diploma de extinção das ordens religiosas rubricou, em 1836, a proibição das corridas e que nos alvores da República, que abolira a sete vezes centenária Monarquia, rapidamente tenha dado entrada na Assembleia Nacional Constituinte um projecto de diploma com o mesmo propósito. Tal associação, simplista e absurda, foi herdada e mantida até hoje pela esquerda, salvo excepções, que nunca abandonou o propósito de pôr fim a um espectáculo que reputam de marialva e miguelista.

O projecto da deputada não inscrita deixa flagrantemente patente a desqualificação do ser humano. Preocupa-se em dar destino às praças de touros, mas não dedica uma palavra relativamente às consequências sociais e económicas da proibição da tauromaquia. Ganadeiros e cavaleiros não merecerão, a seu ver, contemplações, pois mais não são que resíduos feudais que urge eliminar.

Quanto à sorte dos demais, na esmagadora maioria gente modesta, não são mais merecedores de atenção, pois cometem o duplo pecado de serem humanos e cúmplices do “massacre”. Não é surpreendente, vindo da pena de uma deputada que pertenceu a um partido que tardiamente introduziu as pessoas na sua designação, mas é chocante.

Nada consta também quanto à forma como pretende transformar as praças de touros em centros culturais, pois não sendo o Estado seu proprietário não tem, assim, o direito de lhes decretar uma finalidade específica. Finalidade essa que é tudo menos inocente, pois pretende associar a cultura à civilização e a tauromaquia à barbárie. Engana-se, porém, a senhora deputada. A tauromaquia também é cultura. A nossa.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.