“A única estratégia de saída da pandemia (COVID-19) é a ciência, e todos nós teremos um papel a desempenhar”, Prof. Gabriel Leung, Reitor da Universidade de Medicina de Hong Kong

O Reino Unido abriu esta semana as portas para um regresso à normalidade, com uma significativa remoção de restrições. A elevada percentagem de população vacinada – mais de dois terços dos britânicos já receberam a primeira dose da vacina – permitiu dar passos firmes naquilo a que se pode chamar de processo de grande reabertura das economias europeias, e que deverá começar a ter lugar à medida que o processo de distribuição de vacinas vai ganhando ímpeto e maior abrangência. Mau grado as preocupações com o surgimento de novas variantes do vírus.

Mas esta transição para uma nova normalidade é uma discussão que poderá começar a ganhar palco no final do verão, quando a percentagem de população vacinada atingir valores acima dos 70%. Tal como poderá trazer consigo novos hábitos de vida, não apenas no que diz respeito ao trabalho remoto, mas também ao modo como escolhemos o local de residência.

O mercado de trabalho e a desintermediação e aumento da conectividade global

Um dos debates que mais curiosidade desperta tem a ver com a transição que pode existir no mercado de trabalho, e na forma como o teletrabalho poderá vir a conquistar um lugar fixo na sociedade de hoje. A verdade é que a pandemia mudou a forma como olhávamos para a tecnologia disponível, a qual passou, num ápice, a elemento essencial do dia a dia. Isto tornou-se real porque, por um lado, foi possível dar sequência à procura através das plataformas de aquisição de bens e serviços online. E, por outro, manter a produtividade e oferta de alguns serviços através da conectividade virtual (ex.: reuniões, consultadoria ou aulas via plataformas como a Zoom).

Estas alterações permitiram, inclusivamente, a redução de custos de estrutura operacional: são necessários menos metros quadrados de escritório, e o espaço físico destes pode, inclusive, ficar fora dos centros urbanos. Ora, algumas destas alterações podem muito bem ter-se tornado permanentes.

É certo que a interação pessoal continuará a ser relevante, mas as conclusões sobre o efeito da pandemia indiciam que este será um catalisador e acelerador da adoção de novas tendências e hábitos já visíveis e em crescimento no seio das comunidades de nómadas digitais – emergente tendência de profissionais com elevada mobilidade e que habitam em diferentes países do mundo, mantendo o mesmo posto trabalho em determinado país, trabalhando remotamente.

Estas comunidades são um dos principais exemplos da ascensão do teletrabalho durante a pandemia. De acordo com os números da consultora MBO partners, entre 2018 e 2020 os números deste tipo de trabalhadores mais do que duplicou nos Estados Unidos, passando de 4,8 milhões para 10,9 milhões de americanos, tendência que deverá manter-se durante as próximas décadas. Segundo Pieter Levels, fundador da NomadList, estes nómadas digitais poderão ascender a mil milhões globalmente, em 2035.

Os nómadas digitais globais não são caso único de mobilidade – a saída dos grandes centros urbanos

O fenómeno da comunidade de nómadas digitais enfrentará algumas dificuldades de implantação a curto prazo, sobretudo devido às restrições e exigências locais, que variam de país para país e que podem representar um obstáculo temporário – mas, a médio prazo, esta poderá de facto ser uma tendência estrutural.

Alguns gigantes tecnológicos, como a Apple, já anunciaram que a nova norma será o trabalho remoto, pelo que muitas empresas de menor dimensão e em sectores diferentes têm vindo também a seguir o exemplo, e isso pode alavancar uma mudança de paradigma e de mentalidades. No entanto, a flexibilidade de soluções também significa que haverá um grupo significativo de trabalhadores que poderão ver na aposta pela mobilidade e trabalho remoto uma oportunidade para ficarem mais perto das comunidades locais ou da periferia – e não tanto para viajarem pelo mundo como os nómadas digitais.

Com efeito, esta poderá até ser a principal discussão sobre a transição no curto prazo. A possibilidade de estar mais perto da família, de perder menos tempo nos transportes, uma vez que não é necessário estar todos os dias no escritório presencialmente, pode representar uma situação de ganho efetivo para as empresas e também para os trabalhadores.

É certo que nem todos os postos de trabalho poderão ser realizados via trabalho à distância, e que uma parte significativa da economia fica de fora do universo de profissões elegíveis (por exemplo, 60% dos postos de trabalho nos Estados Unidos não são possíveis de replicar remotamente, de acordo com o recente trabalho de análise do investigador e economista da Universidade de Chicago Brent Neiman. Contudo, no que diz respeito a um vasto conjunto de sectores, como é o caso da consultoria, do sector financeiro, das tecnologias de informação e ainda de algumas funções comerciais e de negócios de venda online, representam nichos onde esta tendência poderá ter vindo para ficar.

A decisão de comprar casa poderá valorizar mais a qualidade de vida

Confrontados com mais tecnologia e condições de trabalho mais flexíveis que permitem, pelo menos de forma parcial, utilizar a sua área de habitação como escritório, não surpreende que muitos dos profissionais que podem trabalhar remotamente também ponderem deixar de viver no epicentro de grandes áreas urbanas. Muitos dos atrativos das grandes cidades não estão exclusivamente relacionados com a proximidade do trabalho, pelo que continuarão a ter um peso decisivo no processo de escolha da residência.

Mas a localização da habitação é seguramente uma variável relevante, em conjunto com outras duas variáveis chave: o esforço financeiro, por um lado, e infraestruturas culturais, desportivas e de lazer de qualidade, por outro. A interceção destes três equilíbrios pode alterar-se significativamente à medida que a melhoria das condições de trabalho remoto forem ganhando espaço nos próximos anos, ao ponto de influenciar a decisão de muitas famílias de se deslocarem das grandes cidades para cidades mais pequenas das periferias, onde podem beneficiar de preços bastante mais acessíveis na habitação e desfrutar de infraestruturas de qualidade.

As grandes cidades vão seguramente continuar a ser muito apelativas, sobretudo pelo que oferecem em termos de condições e lazer, segurança, cultura e proximidade das comodidades modernas. Mas os incentivos para a mudança tornar-se-ão muito visíveis em termos financeiros, sobretudo para os agregados familiares com filhos e/ou ascendentes a cargo, acrescidos da flexibilidade laboral que permitirá poupanças financeiras adicionais relacionadas com transportes e alimentação, assim como benefícios em termos de qualidade de vida.

‘Bottoms up’: estratégia de saída promotora de mais mobilidade no trabalho e de melhores equilíbrios

À medida que a taxa de vacinação sobe e se aproxima de valores próximos de 70% da população, a pressão para diminuir significativamente as restrições de mobilidade e abrir a atividade económica serão cada vez maiores. As preocupações com o vírus permanecerão ainda durante mais algum tempo, mas o processo de reabertura será incontornável, e países como Portugal deverão começar a implementar uma estratégia de saída.

Esta estratégia de saída é um processo que poderá trazer consigo um debate público sobre uma transição que envolve novos hábitos adquiridos por força da pandemia e ferramentas digitais disponíveis, e que poderão perdurar no tempo. Falamos de maior flexibilidade no trabalho, de novos padrões no consumo e também de maior liberdade de escolha sobre o local onde iremos viver. No caso dos nómadas digitais até pode atingir uma escala planetária, e noutros casos permitir uma melhoria da qualidade de vida das famílias.

De momento ainda não existe debate público visível. Mas bastará uma pequena alteração em termos de legislação, ou acordos relativos a trabalho remoto, que permitam, por exemplo, trabalhar dois ou três dias a partir de casa, para que se possa registar uma alteração estrutural de comportamento, potencialmente aditiva de valor para empresas (menores despesas com escritórios), trabalhadores e também para as comunidades mais periféricas, que são normalmente objeto de fuga migratória de talento e de população.