Se uma criança começar a estudar hoje, isto é, se começar a frequentar a escola pela primeira vez e as condições se mantiverem as mesmas ao longo do tempo – e por condições refiro-me aos anos que estão estipulados para realizar os respectivos níveis escolares/académicos, até completar o doutoramento – terá estudado (isto sem percalços) pelo menos 20 anos. E atenção, estou a ser muito, muito optimista, já que conto apenas três anos para uma licenciatura, e só um ano para um mestrado, e depois apenas quatro anos para fazer um doutoramento.

Se, além destes “básicos” 20 anos, essa pessoa realizar um pós-doutoramento – e atenção que este não é um grau académico, mas uma fase, eu diria intermédia, entre finalizar um doutoramento e atingir a tão desejada posição como Professor/Investigador de carreira na Academia – há que somar uns bons (ou maus) anos: cada vez mais gente fica por ali nesse limbo, já que raramente abrem posições permanentes nas universidades públicas. Se se tiver a sorte de obter uma bolsa de Pós-doutoramento, acrescem, digamos, mais três anos. Já vamos em 23 anos a estudar/investigar/trabalhar, 11 dos quais a um nível mais exigente, ou seja, na Universidade.

Se, como tantos de nós, frequentou a universidade no período pré-Bolonha, convém adicionar mais um ou dois anos a uma licenciatura, e já vamos em 25 anos, mais um ano ou dois anos ao tempo do mestrado, o que quer dizer que já vamos em 27 anos. E se, em vez de quatro anos, demorar seis a fazer o doutoramento (esperam-se meses para defender uma tese em Portugal e há muitos programas com aulas, por exemplo onde se ganha, ou perde, um ano), já vamos em 29 anos.

Se alguém entrou na escola primária (ainda se chama assim?) com seis anos, isto significa que estará preparado para entrar na carreira de Professor Auxiliar, que é a categoria de entrada no sistema de ensino superior público no nosso país, com 35 anos de idade. Isto quer dizer que até aí teve que lidar com condições salariais, insegurança laboral, horários de trabalho onde não há fins-de-semana, férias decentes, pressão psicológica, orientadores desorientadores, preconceitos de género, de sotaque, de região, etc., por anos e anos a fio.

Vamos dizer a uma pessoa com 35 anos, altamente qualificada, que muitas vezes até teve uns part-times para sobreviver (não se fica rico em Portugal por ser-se um académico) que trabalhou imenso na esperança de atingir o seu desejado (merecido?) emprego, que deve ganhar menos, apesar dos anos de dedicação, que deve trabalhar mais e continuar com bolsas e a ter direito a zero condições de protecção social (como subsídio de desemprego); que deve, porque não têm condições para tal, abdicar de constituir família (com que salário se pagam as contas da creche, as mochilas, os livros, as aulas de natação, a alimentação, o transporte, etc.), de ter vida pessoal (e o tempo para isso?), de esperar por um futuro melhor e condições de trabalho condignas. Quem se quer sujeitar a isso? Será justo?

Acredito que a maior parte da população não tem conhecimento específico destas vidas, destes processos e do quão difícil é ser “estudante para sempre”, e esse desconhecimento tem que acabar. Muitas vezes nem sequer os Professores de carreira têm essa informação, sabem lá quanto se ganha com uma bolsa de doutoramento ou de pós-doutoramento em Portugal (para os que ainda têm esses recursos, muitos há que nem a essas bolsas conseguem ter acesso).

Há muitos anos, a minha orientadora americana perguntava-me o que é que eu gostaria de fazer no futuro, quando finalmente terminasse o meu doutoramento. Na altura, muito ingenuamente, respondi-lhe que gostaria de leccionar e investigar em Portugal e sobre Portugal, fazer e estabelecer a minha carreira no meu país, dar o meu contributo para melhorar o sistema, um contributo pequeno, é certo, mas uma retribuição pelos anos (esses anos todos) que estudei na Escola e na Universidade públicas em Portugal, e que a democratização do processo de ensino pós-25 de Abril me permitiu.

Na altura, lembro-me da expressão facial meio incrédula que ela fez e pensei que era pragmatismo próprio de alguém vindo de um sistema como o dos EUA. Hoje percebo-a bem: deve ter pensado que eu era uma sonhadora e uma pessoa completamente irracional, uma vez que vida na Academia em Portugal é hoje razoável apenas para muito poucos, e que os sonhos não pagam as contas no final do mês.

Ora vejam bem: exige-se da geração mais bem preparada que o país alguma vez teve um sacrifício inglório. É importante que a sociedade saiba quais são as condições de trabalho de grande parte dos que trabalham nas nossas universidades e o que isso implica na vida de pessoas reais, e não apenas de números. Confesso que não auguro um bom futuro para um país, e para os seus cidadãos, se começarmos a perguntar, quase em jeito de afirmação: “estudar para quê?”.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.