Entendemos a realidade como o que acontece de maneira verdadeira e certa, em oposição à fantasia ou à imaginação.  Mas o cérebro interpreta o que ocorre à nossa volta através dos sentidos e fixa a perceção através de uma narrativa própria, que configura um relato individual da verdade. Nesse cenário de relatividade percetual, o novo mundo digital está a permitir contar-nos as coisas de uma forma radicalmente diferente, através de tecnologias progressivamente mais convincentes de realidade virtual, aumentada e híbrida.

Se a estas novas formas de realismo acrescentarmos a variável temporal, os cenários resultantes são ainda mais surpreendentes. O tempo é também uma perceção, não é uma verdade absoluta, que normalizamos para regrar a nossa vida, adaptar-nos ao universo e às nossas limitações vitais.

A utilização das novas tecnologias digitais de perceção para ultrapassar as limitações biológicas do tempo tem criado um novo conceito: a “eternidade aumentada”. Trata-se de configurar avatares humanos, com base na utilização da inteligência artificial para capturar informação comportamental nas redes sociais, correios eletrónicos, fotografias ou o perfil de navegação na Internet, de forma a criar um clone digital com reações emocionais com quem conseguimos manter conversações realistas. Quando se trata de uma pessoa já falecida, estas tecnologias ajudam, em termos práticos, a ultrapassar as fronteiras do além. Se acrescentarmos às tecnologias digitais as tecnologias de clonagem biológicas ou biónicas, o resultado é formidável.

As implicações sociais desta nova realidade, baseada em tecnologias progressivamente mais acessíveis a qualquer pessoa, são enormes. No plano ético e legal, deveremos determinar se as memórias de uma pessoa falecida deverão tratar-se como os restos humanos (não biológicos, mas informacionais) de um falecido. Ou quais as implicações identitárias de um cérebro crescido num bio-reator, sem corpo e a partir de células madre, no qual carregamos uma personalidade digital compilada da forma referida anteriormente. Ou o enquadramento da imortalidade (virtual) através do armazenamento na nuvem de uma réplica do conteúdo e das reações do nosso cérebro.

Estas formas de sobrevivência digital às nossas limitações orgânicas são desconcertantes. E ainda se transformam em algo mais inquietante se pensarmos que esta herança digital pode ser alterada para manipular sentimentos e emoções. Ou servir para perpetuar ditadores.

Estamos a entrar numa nova dimensão do relativismo, em que convivem realidades paralelas e em que temos que redefinir a nossa relação antropológica com o tempo. A temporalidade humana, a nossa finitude, é o principal condicionante da perceção da nossa existência e o pressuposto fundamental da nossa civilização. Devemos urgentemente começar a preparar as novas gerações nas escolas para conviver com esta realidade e reforçar o estudo das disciplinas humanísticas, que constituem uma esperança de sobrevivência neste novo mundo de zombies digitais, tão apaixonante como desafiante.