Estamos em pleno processo eleitoral para o Parlamento Europeu e, no entanto, o debate político sempre tão exacerbado e dividido sobre valores, como que amorna quando o assunto é a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Parece que o apoio incontestável à independência e auto-determinação do povo ucraniano obriga-nos, sem alternativa, a escorregar por um declive inclinado bélico. É como se o mais estrito determinismo histórico nos subtraísse a capacidade de pensar um curso diverso para os acontecimentos que nos esperam no futuro próximo. É como se nem sequer houvesse espaço para outra vontade além da que determina o mergulho no conflito que ainda levará os nossos filhos à guerra. Devia-nos pesar tremendamente que eles e elas sejam mobilizados para uma condição a que fomos poupados e que não acreditaríamos que tão cedo voltasse a ser encarada como normal.

Choca ver dirigentes partidários trazerem de volta o tema do serviço militar obrigatório neste contexto. Há uma discussão relevante, e antiga, sobre as virtudes de um serviço cívico obrigatório, de como assim se contribui para fomentar uma consciência e prática de deveres para com a comunidade. Mas esta era uma alternativa ao serviço militar obrigatório que se propunha ser melhor do que um serviço militar voluntário. Hoje, pelo contrário, o que se ressuscita é o caminho do passado de uma mobilização de jovens no florescer das suas vidas para cenários de guerra e de morte. Nem se disfarça. No nosso país, o líder do Chega emprega um eufemismo afectado:  acha que o assunto deve ser estudado. E lá vai confessando logo de seguida os motivos por que devemos “estudar o assunto” – é porque o “contexto internacional mudou” e “o país não pode viver sem forças armadas autossuficientes e firmes”. A corrida às armas, o delírio da autossuficiência, de que se pode vencer alguma coisa vencendo guerras, a vontade da grandeza pela violência, pela superioridade da força, do carácter, do nacionalismo, visões passadistas com toda a irracionalidade e os custos associados. Como é que em 2024 ainda se tolera o discurso de mobilização de miúdos – crianças, na verdade – para matar e serem mortas? Não se trata, bem entendido, de censurar. Ventura diga o que lhe passar pela cabeça. Mas há que pôr a nu, tirar as consequências do que diz e criticar. Em nome de que “contexto” se permite perturbar as vidas alheias? E quanto tem contribuído para esse “contexto” ao nutrir as “causas” de que se Putin se faz grande arauto? Não falta ironia ao oportunismo das direitas radicais, por cá e por essa Europa fora.

O declive derrapado está aí, bem ensebado, a fazer-nos escorregar coletivamente. Há semanas, Putin ordenou exercícios nucleares em resposta a “ameaças” ocidentais. Sorrimos como se fosse bazófia do detentor do maior arsenal nuclear à superfície do Planeta. Há mercenários pelo lado da Rússia, também legionários da Legião Francesa no leste do território ucraniano.  Assobiamos para o lado. E há dias a Alemanha e os Estados Unidos autorizaram a Ucrânia a utilizar as armas que lhe proporcionaram em ataques a alvos no território russo. É certo que são alvos ofensivos e que o apoio à Ucrânia invadida se justifica pelo direito internacional. Mas, como fez saber o Vaticano, pela voz do seu secretário de estado, Pietro Parolin, este caminho deve sobressaltar “todos aqueles que têm no coração o destino do nosso mundo”.  Palavras fortes que nada ecoam nas convicções dos que nos governavam há meses e dos que nos governam agora. Houve um tempo em que o imaginário nacional era o de participar em missões de paz um pouco por todo o mundo. O que aconteceu entretanto?

Com armas da NATO a atingir russos em solo russo, já não é apenas continuarmos a escorregar pelo declive. É o próprio declive estar a acentuar-se, a ponto de parecer um poço e o deslizar nele ser uma queda livre.

Dizer isto em nada contemporiza com relativismos que dessem algum tipo de acolhimento aos motivos de Putin para uma invasão que atenta abertamente contra o direito à auto-determinação de um povo. E também em nada se contemporiza assim com uma agenda anti-liberal nos costumes e que tem justamente Putin por paladino (tão ironicamente acompanhado pela extrema-direita, pela direita radical e pelos fundamentalismos). Relativizar sem relativismos é sermos rigorosos nos posicionamentos e é a única possibilidade de desenharmos com precisão a sua complexidade. De outro modo, seremos derrotados pelo simplismo e vergados à brutalização.

Se perseverarmos no espírito de rigor, há dois grandes equívocos que não podem passar em claro. Por um lado, não faz sentido evocar uma Europa de paz e convívio liberal como motivo para a transformar em potência cada vez mais armada e que negligencia as oportunidades para fazer algum caminho em direcção a uma solução de paz possível, por imperfeita que seja. A objecção a formular é simples: que conferências de paz têm sido realmente patrocinadas pela Comissão Europeia, pelo Parlamento Europeu ou pelo Conselho da UE? É uma contradição performativa pretender a paz sem contribuição genuína da potência da paz, apenas a disponibilidade para o reforço de posições bélicas, ainda que ao abrigo do direito internacional.

Por outro lado, é um terrífico engano, que raia a hipocrisia, admitir que a Ucrânia se torne o campo de batalha da defesa de uma certa concepção de Europa, por mais que a abracemos. Aceitar que a guerra da Ucrânia transporte a mais pequena centelha de autointeresse europeu trai uma instrumentalização que se tornou outra das maiores contradições do projecto europeu. Usar a Ucrânia como campo de batalha do modo de vida e dos valores europeus não é muito diferente dos acordos que a UE vai fazendo com a Turquia e países do norte de África para que retenham aí os migrantes que procuram chegar a solo europeu.

Por solidariedade com a Ucrânia e por amor ao seu povo cada vez mais martirizado não faz qualquer sentido agradecer a Zelenzky a defesa da Europa e dos seus valores. É Ucrânia que precisa de auxílio. Não a Europa. E não um auxílio de guerra, mas fazedor de paz. Se a Europa precisa de alguma coisa é de uma reflexão sobre as suas contradições internas. E estas não envolvem apenas os novos nacionalismos, por disruptivos e ameaçadores que sejam. São os consensos que vão operando nas suas instituições, operados por partidos moderados, são as práticas que se incrustaram nas relações dentro da União Europeia, a sua escassa democraticidade e transparência, apesar do enorme impacto que as suas decisões têm das vidas quotidianas de qualquer cidadão europeu. Ao ponto de poderem, contra tudo o que imaginaríamos, levar os nossos filhos para campos de batalha.

Num tempo de eleições, devíamos estar chocados com o horizonte de possibilidades que se vai definindo do estreito anel do fundo do poço em que caímos. Mas em Portugal a discussão na esfera pública segue um sentido leviano enervante. Como se nada dissesse realmente respeito às nossas vidas. São raras as excepções a avaliar em todas as suas dimensões – políticas, económicas, históricas, civilizacionais – o caminho alarmante que a União Europeia tem levado. Viriato Soromenho-Marques tem sido uma delas, informado e inconformado.

No presente quadro, ouvimos falar de reforços orçamentais para as forças armadas um pouco por toda a União Europeia, Portugal incluído. Discutem-se valores na ordem dos 2% dos respectivos orçamentos. Mas, permita-se a inocência, era a financiar e a praticar cultura que aprenderíamos a conviver e, dessa maneira, também a desarmar de argumentos os que acham que impõem as regras do convívio pela força. Infelizmente, até a palavra “cultura” vai pontuando cada vez mais no debate público associada à palavra “guerra”. Devíamos perceber que as guerras culturais são uma antecâmara da cultura de guerra que se vai disseminando. E nós sabemos quem são os seus incendiários. Uma Europa de paz não constrói o convívio na guerra mas na cultura.