A agonia em que a consumação do Brexit está a tornar-se deve preocupar europeístas e não ser recebida com satisfação ou entendida como evidência de que havia razão na oposição ao Brexit. Pelo contrário, só tem feito perderem-se razões do lado europeísta. A questão crucial afinal já não é se a UE sobrevive ao Brexit, mas, bem diferentemente, se o Reino Unido sobrevive à saída da UE. Subitamente, a trágica impressão de um “to be or not to be” abateu-se sobre os britânicos.

Se o Reino Unido não sobrevive, ou sobrevive em estado comatoso, à sua saída e se por isso mais nenhum Estado-membro pode considerar seriamente semelhante possibilidade, então a UE deixa de poder ser pensada e apresentada como o resultado de uniões livres, projecto de liberdade. Passa a ser como uma união forçada, sem saída, a última actualização do software ideológico TINA (There is no alternative), que já vai para aí na quarta geração, depois de Margaret Thatcher, Maastricht e Austeridade.

Naturalmente, persistem razões fundamentais para permanecer na União – a Europa sem fronteiras, o cosmopolitismo democrático, a cooperação económica e a solidariedade social. Só que nem todas as razões que levam a querer permanecer são boas e decentes. A UE fez-se, e continua a fazer-se, de adesões livres de novos estados europeus e até prevê nos seus tratados a possibilidade de saída.

Mas se o “Exit” está gravado no cimo de uma parede de betão armado, então o problema é sério. A verdade é que tanto portugueses como gregos já o sabiam, já era essa a ameaça que estava em cima da mesa quando se viram subjugados aos respectivos “programas de ajustamentos”, mas podia-se sempre dizer que foram as incúrias domésticas as responsáveis pela dependência. Agora, a história é outra. O constrangimento económico já não se justifica economicamente: é um constrangimento político. Sempre foi, aliás, só que agora fica claro. O que era passou também a parecer que era.

Em meados do século XVII, o génio de Thomas Hobbes concebeu, para legitimar o absolutismo emergente, um contrato social em que o medo da morte violenta e súbita levava cidadãos livres unidos em soberania a transferirem essa soberania para um rei, alienando-a assim sem retorno. A chantagem do medo hoje é outra, económica, mas resulta na mesma disponibilidade forçada para o que Hobbes chamou de “translatio imperii”. O “não há alternativa, o “ou isto ou o desastre”, é o equivalente contemporâneo do medo da morte imprevista e violenta que Hobbes apontava a um homem pensado como o lobo do homem e um mundo social pensado como guerra de todos contra todos.

Na verdade, o TINA é a chave inglesa que enrosca tudo e todos na recriação económica europeia de hobbesianismo. Mas como no tempo de Hobbes, continua a ser um logro. A natureza humana, a sociedade e o mercado são o que deles fizermos, e isso depende muito de aceitarmos ou recusarmos as representações que delas nos impingem.

Infelizmente, é bem compreensível que o protesto político sobre a ordem sócio-económica que a construção europeia vai construindo se configure cada vez mais como soberanista. Se a UE está a gerar, com garantia para a sua subsistência, um Leviatã de sujeição económica de Estados-membros, o impulso de resistência passa a ser o de reaver soberania sobre a condução da vida económica de um país.

Evocar a condição pós-imperial do Reino Unido para justificar a ideia de que o Brexit seria uma excepção —  uma anomalia soberanista britânica desde sempre conhecida, sobre a qual apenas podemos lamentar termos tido a ilusão de superar — é incorrer em vários desvios de atenção imprudentes. O primeiro, e o mais óbvio: se se evoca a condição pós-imperial do Reino Unido, historicamente centrífuga face à parte continental da Europa, não se pode esquecer que a história europeia não foi menos imperial nas ambições continentais muito centrípetas de franceses e de alemães.

Evocar as primeiras e esquecer as segundas é um mau exercício, até de memória histórica. O que não convida a enfatizar nenhumas, a não ser, o que não é pouco, no que possam importar como sombras do passado sobre o presente — como a ressonância de expressões, sempre reiteradas, como “eixo franco-alemão”, que foi justificando a persistência da “pound” e da urgência simbólica do seu valor acima da linha do euro.

Mas mesmo acomodando todas estas susceptibilidades, o que hoje está em questão não é o jogo de sombras da história europeia. Não é certamente o passado britânico que faz o pano de fundo da vontade de desvinculação no Reino Unido, mas o estado presente da UE, marcada por défices democráticos, sociais e de projecto, ao mesmo tempo que se instala como um poder avassalador, que não deixa espaço a recuos, muito menos voluntários.

A vontade de sair não é uma extravagância britânica, mas o que o privilégio britânico pode tornar, como não imaginaríamos, uma razão solidamente fundada. Privilégio por só terem admitido uma integração inconformada e limitada, não cedendo nem na soberania sobre a sua moeda, nem no cepticismo que é timbre da cultura filosófica, intelectual e política britânica, e também por terem uma malha de cumplicidade histórica e geográfica anglo-atlântica, e por não terem sofrido um “ajustamento”, como sucedeu com economias menos robustas.

Ironicamente, o Reino Unido tem a escassíssima folga e margem de manobra de, saindo bem, pôr à prova, como talvez mais nenhum estado membro pode fazer, que a Europa não deixou de ser um projecto livre e não passou, definitivamente, a ser apenas um enorme Leviatã montado em factos consumados económicos.

Para os europeístas, a pergunta shakespeariana que temos de nos pôr, não é se a UE sobrevive ao Brexit, mas se outra ideia e prática de UE, por que valha a pena lutar, sobrevive ao Brexit. Dizer que precisamos dela para conservar a paz no continente não importa a resposta que demos, não é bem perguntar se UE sobrevive mas se temos alternativa a sobreviver nela. É dar por adquirido uma Europa Leviatã.

O Brexit não é um dilema entre europeus continentais e britânicos, não é uma excepção ou extravagância. Está a confrontar-nos, na maneira como se lhe responde, com a questão crucial sobre o que queremos que seja a UE e sobre o que nos reservamos nela.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.