Ainda em fase do confinamento possível, vejo nos diversos telejornais alusões a um invocado “regresso à normalidade” e dou por mim a questionar-me se serei a única a quem tal expressão pouco ou nada diz.
Qual é, exactamente, a normalidade a que queremos regressar? A encararmos com total passividade sucessivas mentiras, enquanto fechamos os olhos e optamos por inventar um mundo melhor, ali à espera de ser conquistado? À circunstância de os representantes da Direcção Geral de Saúde dizerem algo e o seu oposto e nada acontecer, sem que ninguém saia de casa e os tire do ecrã no televisor? À TAP, que andou em roda livre durante décadas e cuja gestão só agora, sob o espectro de termos que voltar a injectar lá dinheiro, é questionada? Ao Novo Banco que, imperturbavelmente, continua a senda de vender activos e nos apresentar a factura dos prejuízos enquanto os seus alegados gestores se acham no direito de receber prémios? Aos estivadores de Lisboa, despedidos de um lado, enquanto se contratam precários do outro, com todos nós a pagar as prestações de desemprego e o Governo a fingir que nada se passa? Aos milhares de desempregados, que, fruto dos vínculos que detinham, em rigor nunca chegaram a estar efectivamente empregados? Aos artistas, aos quais não é sequer reconhecido o estatuto de trabalhador independente, uma vez mais apesar de tal lhes ter sido prometido? À falta de apoios reais às empresas ditas normais, apesar do anúncio e de toda a propaganda feitos em sentido oposto?
Todos estes factos ocorreram connosco fechados em casa, sob a ameaça de um inimigo cujos exactos contornos, também, nunca nos foram exactamente explicados. Ou, tendo-o sido, foram dados sinais opostos, às vezes no próprio dia. A ideia, imagino eu, era não deixar as pessoas inquietas e sossegá-las, enquanto estavam confinadas, como se usa dizer. Mas a história não tem muitos exemplos do mal ter sido combatido enquanto as pessoas dormem sestas.
É certo que o típico português prefere continuar a caminhar, como se nada fosse, com os olhos não absolutamente fechados mas, na melhor das hipóteses, entreabertos. Vivemos sob o estigma de que as coisas se resolvem por si e, até lá, como alguém disse, devemos aguentar tudo. Ainda que, para tanto, prefiramos uma mentira suave a uma verdade gritada porque nunca estamos para nos incomodar muito e as causas são boas é para manifestações de ódio nas redes sociais.
Dou por mim a relembrar Óscar Wilde e a frase que escreveu um dia: “a verdade é raramente pura e nunca simples”. Contudo, porque a mesma verdade, ainda que desagradável, acaba, sempre, por vir à tona, no meu caso concreto, prefiro que ma digam. Aos olhos fechados dos momentos de pânico, respondo que acho que o perigo se enfrenta com eles abertos. Ainda que a verdade seja dura. Principalmente quando o é. E a verdade é que não virá uma crise. Ela já existe. Fingir que assim não é não resolverá o problema. Ir a banhos em praias também não.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.