Na ressaca da vitória de Biden, anunciada sábado à tarde, ouvi alguns comentadores nacionais, muito seguros de si e das suas informações, a darem crédito às fanfarronadas de Trump quanto ao recurso aos tribunais, e a falarem de “irregularidades”, “ mortos a votarem” e “da  situação dos votos ilegais na Pensilvânia”.

Convém esclarecer, porque pelos vistos ninguém tratou de confrontar os referidos comentadores, que a estratégia de Trump nessa matéria é uma fantasia, igual a muitas que o mesmo tratou de difundir nos últimos quatro penosos anos na presidência americana.

As acusações de “fraude” alimentadas por Trump e os seus apaniguados consistem, essencialmente, no seguinte: na suposta ausência de observadores externos junto das mesas onde se contam os votos na Pensilvânia, na remessa tardia de votos por correspondência na Georgia e no Michigan, numa suposta “urna roubada” no Nevada e, finalmente, na impossibilidade da contabilização dos votos antecipados no estado da Pensilvânia que cheguem para além do dia 3 de Novembro.

Em rigor as três primeiras acusações, ou foram já objecto de decisão  judicial e todas elas indeferidas (se bem que possam existir recursos), ou não chegaram sequer a determinar qualquer procedimento judicial por ostensiva falta de provas. Já a questão dos votos antecipados (mail in votes) no estado da Pensilvânia é a única que suscita alguns problemas jurídicos mas, acrescente-se, não há aí o mínimo vestígio de “fraude”.

O ponto é o seguinte: de acordo com a legislação estadual, a data limite para receber votos antecipados é a do dia da eleição, contudo o Supremo Tribunal da Pensilvânia (que obviamente não é composto por adeptos nem de Trump, nem de Biden) decidiu que, num contexto de pandemia, esse prazo poderia ser alargado até dia 6 de Novembro (sexta-feira), desde que o boletim de voto tenha sido comprovadamente remetido até ao dia das eleições.

O partido republicano da Pensilvânia levou o caso ao Supremo Tribunal (Federal) ainda no mês de Setembro e este considerou que não estava em condições de opinar, atendendo aos prazos apertados para que qualquer decisão produzisse efeito imediato, mas admitiu que o assunto poderia vir a ser analisado mais tarde. Ora, justamente antecipando qualquer litigância posterior, o Procurador Geral da Pensilvânia deu instruções precisas junto da Comissão Eleitoral estadual para que os votos que chegassem entre as 20 horas de terça-feira dia 3 e as 17 horas de sexta-feira dia 6 viessem a ser separados para efeitos de apuramento.

Isso significa que, mesmo admitindo uma decisão do  Supremo (Federal) favorável à desconsideração desses votos, nunca ficaria em causa a votação global do estado da Pensilvânia, não sendo sequer previsível pela diferença de votos entre Biden e Trump que essa supressão de votos alterasse a vitória do primeiro. Aliás, a decisão tornar-se-á ainda mais irrelevante para o resultado final se Biden confirmar a sua vitória, como tudo o indica, por uma margem superior a 20 votos no colégio eleitoral.

Importa recordar que a situação actual não é comparável sequer com a que ocorreu em 2000 que redundou, por decisão do Supremo ao interromper a recontagem na Florida, na vitória de George W. Bush, porque aí só a conquista desse Estado, nem que fosse por um voto, permitiria a qualquer dos candidatos ser eleito Presidente.

Em suma, estamos perante mais uma fantasia trumpista, infelizmente repetida sem sentido crítico e verificação das fontes.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.