A chanceler Angela Merkel anunciou, formalmente, que não iria recandidatar-se a mais um mandato à frente da CDU, a União Cristã-Democrata que lidera o governo de coliga­ção na Alemanha. Apesar dessa decisão, informou que não iria deixar a liderança do governo de Berlim, levando até ao fim o seu mandato que expira em 2021. Com esta decisão encerra-se um ciclo na vida da CDU, da Alemanha e da própria Europa.

Dora­vante, será mais do pós-2021 que se passará a falar. Muito mais do que do passado de Merkel e do seu presente até à data das próximas eleições legislativas. Para todos os efeitos, estamos perante um ciclo que se fecha (ou que se irá fechando) não faltando os balanços desse longo consulado que, indelevelmente, marcou tanto a Alemanha quanto a Europa.

Sendo ainda cedo para uma avaliação global do mesmo, há duas breves notas que devem, para já, ficar registadas e que, seguramente, a História não deixará de reter.

Em primeiro lugar, remetendo-nos para o início do seu mandato, não poderia o mesmo ter começado de forma mais desastrada e mais indigna. Merkel foi a sucessora apadri­nhada e acarinhada por Helmut Kohl para lhe suceder na liderança da CDU e como can­didata democrata-cristã à chefia do governo de Berlim, depois do interregno social-de­mocrata protagonizado por Gerard Schroeder.

Porém, pese embora o apoio recebido do ex-chanceler Kohl, Merkel não hesitou nem teve pejo em, de forma vil e torpe, deixar cair o seu antecessor e apunhalá-lo pelas costas quando o mesmo teve de se enfrentar com acusações não provadas de irregularidades no financiamento partidá­rio, optando por calar e assumir culpas que não lhe pertenciam a denunciar os verda­deiros autores das referidas irregularidades.

Foi o pior começo possível para uma incum­bente que se caracterizou por iniciar o seu mandato assente na traição a quem a apoiou e guindou ao cargo e à função que passou a ocupar. Foi, também, um traço de carácter que nunca a abandonou e nunca foi esquecido por quem sempre viu em Kohl um dos artífices da vitória do ocidente sobre o mundo soviético na Guerra Fria e, sobretudo, o grande obreiro da reunifi­cação alemã.

Em segundo lugar, e paradoxalmente, não obstante o balanço final que possa vir a ser efetuado sobre o consulado de Merkel, a líder alemã irá contar com os créditos resultantes da postura que assumiu no início da crise dos refugiados com que a Europa ainda se defronta.

Quando, de vários lados muitas vozes se erguiam contra a ortodoxia alemã face aos Estados que tinham sofrido as agruras da crise das dívidas soberanas, na matéria dos migrantes Merkel teve o discernimento de assumir uma postura de grande flexibilidade, de maior humanismo e de resistência às vozes mais extremistas que reclamavam o encerramento das fronteiras alemãs aos refugiados que demandavam solo europeu. Decerto foi uma atitude pela qual Merkel pagou e ainda paga um preço elevado.

A oposição que surgiu dentro da sua própria área política (CDU e CSU) demonstra-nos isso mesmo. Tal como a subida exponencial da extrema-direita alemã, congregada em torno da Alternativa para a Alemanha (AfD), que acabou por capitalizar uma parte muito significativa do descontentamento que grassa na própria sociedade germânica. Apesar destes desenvolvimentos conhecidos, Merkel deixou a sua marca pessoal bem assinalada nesta dimensão incontornável da política alemã e da política europeia. A história não deixará de lhe prestar a devida justiça.

Encerrado este ciclo na política de Berlim, abrem-se, todavia, legítimas dúvidas sobre a postura alemã no quadro da Europa da União nos próximos tempos, uma vez que o foco começará a incidir sobre o ciclo seguinte. A tentação para a entrada num novo período de pausa ou estagnação, à espera que Berlim defina o seu futuro, será grande. Mas os desafios que a UE tem pela frente dificilmente se compaginarão com mais pausas ou estagnações.

A escassos meses das próximas eleições europeias, quando tudo aponta para uma profunda reorganização das forças políticas no Parlamento Europeu, nomeadamente com uma fragmentação das mesmas e um reforço assinalável dos extremismos radicais, um período de indefinição ou estagnação motivado pela situação política interna daquele que é o Estado-motor do processo de integração europeia poderia acabar por comprometer por muitos e bons anos esse mesmo processo.

Não é disso que a União necessita; não é isso que os europeus esperam das próprias instituições europeias. Oxalá nos enganemos – e não voltemos a entrar num período de limbo europeu e de indefinição da própria União. Mas tenhamos bem presente que o risco de isso acontecer é elevado.