Há algumas semanas escrevi sobre o papel da União Europeia e do Estado português na implementação dos mecanismos que deverão financiar a retoma económica pós-Covid, mas quis principalmente incentivar os privados detentores de poupanças a conhecer os instrumentos financeiros que lhes permitem apostar no tecido empresarial português e investir nas empresas portuguesas.
Escrevi sobre fundos de capital de risco e sobre uma SIMFE, um tipo de sociedade de investimento até agora desconhecido de 99% dos portugueses, como forma de aplicar poupanças em empresas portuguesas e, possivelmente, obter rentabilidades futuras muito interessantes. A estes veículos de investimento poderia juntar as SIGI por também serem obrigadas a investir em Portugal.
Dei o exemplo de países onde os investidores conhecem e participam nos mercados de capitais e estão habituados a investir as suas poupanças em alturas menos boas para recolher a recompensa quando os mercados recuperam – os Estados Unidos e o Reino Unido. Entretanto, nos EUA continuámos a ter inúmeras Ofertas Públicas só nas últimas semanas.
Estes países aceitam risco e regeneram-se a uma velocidade enorme. Criam campeões a cada década, em indústrias distintas, e confiam nos mercados para encontrar soluções e alocar as poupanças. Há risco, é claro, mas também há a recompensa que podemos constatar ao longo das décadas.
O contraponto são sociedades estruturalmente mais rígidas e com aversão ao risco que pouco se regeneram e parecem incapazes de se afirmar. Com grande pena minha, a Europa, individual e coletivamente, está precisamente neste segundo grupo. Basta olhar para a performance e falta de regeneração dos índices acionistas europeus durante as duas últimas décadas para perceber que os seus mercados não são capazes de incorporar novas empresas de forma sustentada ou relevante.
Sabendo isto, as instituições europeias e os responsáveis locais esforçam-se por espalhar a ideia de que querem mercados de capitais funcionais e ágeis. Ainda esta semana, o ministro Pedro Siza Vieira e a presidente da Euronext Lisboa, Isabel Ucha, vieram a público reforçar estas ideias.
Geram-se inúmeros veículos inovadores e segmentos de mercado em cada mercado. Talvez demais. Apregoa-se que é importante que as empresas se capitalizem com capitais próprios e alheios nos mercados e não na banca, para evitar o famoso risco sistémico. É louvável, mas é preciso olhar para o funcionamento dos mercados e perceber o que realmente se passa no mercado de distribuição de produtos de investimento a particulares.
Porque é que os mercados europeus não são dinâmicos? Porque é que a oferta dos emitentes não encontra procura dos investidores?
Dentro das várias razões possíveis, existe uma que julgo deveria ser mais bem estudada e que está na forma como a procura dos investidores particulares é condicionada. Qual é o impacto da implementação de regulação como o MIFID II no funcionamento dos mercados de capitais europeus? Será que a excessiva regulação imposta pela UE às instituições que gerem a poupança dos investidores europeus está a criar entraves ao livre investimento pelos investidores particulares?
No mercado português, como na maior parte dos europeus, quase todas as poupanças dos investidores particulares são geridas em modelos de gestão discricionária ou sugeridas em modelos de aconselhamento, por bancos e, em menor parte, por consultores financeiros. Ora, estes bancos e consultores estão obrigados a cumprir um conjunto de regras estabelecidos na diretiva MIFID II e toda a demais regulação sobre a distribuição de produtos de investimento a investidores particulares.
Hoje, para não haver risco de incumprimento desta regulação, todos os investidores são cuidadosamente perfilados e direcionados para os mesmos tipos de veículos de investimento e/ou modelos de serviço. A preocupação maior é que a entidade onde as poupanças estão colocadas não corra riscos regulatórios. Por este motivo, os mecanismos adotados para determinar o risco dos clientes provavelmente produzem resultados mais conservadores do que os que seriam reais, fruto do medo de correr os riscos resultantes de má classificação. Enfim, vários mecanismos administrativos que condicionam as opções dos investidores levando-os a um conjunto fechado de opções de investimento.
Este tipo de mecanismos não facilitam o livre acesso dos investidores ao mercado de capitais. O bem-intencionado processo regulatório criou um problema perverso. No limite, se todas as poupanças europeias forem investidas nestes modelos e de acordo com os processos de homogeneização criados para cumprir a regulação, todas as poupanças vão ser investidas nos mesmos ativos de grande dimensão gerando uma grande procura para as Big Caps e nenhuma para as Small Caps.
Ora isto contribui para que não haja procura para as Small Caps europeias. Independentemente de quantos segmentos de mercado ou veículos sejam inventados para dinamizar a oferta, a procura não vai aparecer. Neste momento, um investidor que queira investir num título em específico que o seu banco não aconselhe explicitamente é praticamente um rebelde e será tratado como tal pelos mecanismos administrativos do seu banco, sendo muito provável que desista do investimento.
Neste cenário, para as empresas portuguesas, emitir valores imobiliários em Portugal torna-se um ato de coragem com poucas probabilidades de sucesso. Ou o emitente se apresenta com uma capitalização de mais de 50 milhões de euros e uma visibilidade no mercado muito relevante ou estará a travar uma luta inglória num mercado sem compradores. Não é fácil encontrar investidores particulares para as empresas portuguesas quando a esmagadora maioria destes estão condicionados para investir em Big Caps europeias, norte americanas ou japonesas, via carteiras, fundos ou seguros de investimento, oferecidos pelos seus bancos e consultores financeiros, de acordo com a regulação feita pela UE.
Mas não é a União Europeia e Portugal que querem dinamizar os mercados de capitais? E que pretendem ter um tecido empresarial de PME dinâmico e menos dependente da banca?
É preciso perceber as consequências da regulação e garantir que não estamos a estrangular a procura por força da regulação. Por vezes, é necessário aceitar alguns riscos. Não podemos querer criar oferta e depois secar a procura. No final é muito simples, não há mercados dinâmicos se não houver procura.
Não sendo possível ter empresas de cinco milhões de euros de capitalização bolsista em bolsa, é preciso pelo menos incentivar os veículos que, por agregação de ativos mais pequenos, permitam disponibilizar exposição ao tecido empresarial português. Esses poderiam ter mais liquidez e diversificação.
A coragem tida pela Flexdeal em apresentar-se ao mercado deve ser louvada porque o dinamiza, porque obriga os investidores a ver que existem opções de investimento e, claro, porque constitui mais um passo no cumprimento dos seus objetivos de angariação de capitais para investir em PME portuguesas. Com as devidas diferenças, o mesmo pode ser dito sobre o Bankinter e a sua SIGI, a Ores.
É preciso mais para que estas opções de investimento sejam conhecidas e os investidores as procurem. É preciso encontrar forma de multiplicar estes veículos e assim garantir que os investidores particulares portugueses aplicam as suas poupanças no tecido empresarial português, como pediu Pedro Siza Vieira.
Já agora, no contexto da discussão do Orçamento do Estado de 2021, talvez alguns destes veículos investidores exclusivamente em ativos portugueses devessem estar devidamente identificados no Estatuto de Benefícios Fiscais. Pelo menos de forma a que os portugueses tenha um incentivo fiscal para investir nestes veículos (SIMFE e SIGI) equivalente a outros já previstos.
Esta seria uma medida concreta e rapidamente implementável, que iria ao encontro dos objetivos expressos pelo ministro da Economia e que fomentaria a canalização de investimento de particulares para o tecido empresarial português.