A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, respondeu por escrito a algumas perguntas que o Jornal Económico lhe formulou a propósito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC ou ENAC) cujo texto definitivo ainda não é do conhecimento público, apesar de já ter sido aprovado em Conselho de Ministros do passado dia 18 de março.
Em relação à proposta que esteve em discussão pública, quais são os contributos principais que vão ser incorporados na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC)?
No âmbito das medidas respeitantes à prevenção da corrupção, as observações efetuadas no período de consulta pública focaram-se principalmente numa lógica de omissão de medidas em relação aos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, ao financiamento dos partidos e ao controle financeiro das autarquias locais.
A versão final da Estratégia clarifica e dá um maior detalhe aos regimes jurídicos vigentes nessas matéria, enfatizando o teor de algumas alterações legislativas mais recentes, em particular as que resultam do designado pacote transparência, em vigor desde 2019, tornando claro que não se verificam verdadeiras omissões.
Independentemente disso, acolhemos medidas concretas, como a adoção de pactos de integridade ou a implementação integral do Open Contracting Data Standard, na base de dados de contratos públicos e do Observatório das Contas Pública.
Ao nível da repressão, foram também acolhidos diversos contributos.
Quanto à dispensa de pena, mantém-se a sua obrigatoriedade (alteração ao regime vigente, resultante da primeira versão da Estratégia) nos casos de quebra de silêncio antes da instauração de processo-crime mas admite-se a dispensa de pena (não obrigatória) nos casos de colaboração decisiva durante o inquérito ou instrução acolhendo-se, assim, observações efetuadas maioritariamente por magistrados do Ministério Público de que seria nesta fase que a colaboração do arguido assumiria uma maior relevância.
Também nos casos menos graves se passa a admitir que a dispensa de pena seja declarada em inquérito ou instrução, não levando o arguido colaborante a julgamento.
Estende-se a dispensa de pena a crimes relacionados com a corrupção, se o agente os revelar às autoridades, não abrangendo, todavia, crimes praticados contra bens eminentemente pessoais (por exemplo, pode abranger o branqueamento, mas não as ameaças, coação ou crimes contra a integridade física). Esta extensão fundamenta-se numa perspetiva de ordem prática – o agente do crime pode não querer contar a verdade se confessar o crime de corrupção pensando que pode ser punido por crimes cometidos por causa ou em relação com a corrupção.
Quanto à atenuação especial da pena, esclarece-se que a mesma é aplicável quando os arguidos colaborem ativamente na descoberta da verdade até ao encerramento da audiência de julgamento, contribuindo de forma relevante para a prova da sua responsabilidade ou para a prova da responsabilidade de terceiros.
Relativamente à Suspensão Provisória do Processo, ao contrário do que estava previsto na primeira versão da Estratégia e ponderados alguns dos contributos, nomeadamente os efetuados pela Ordem dos Advogados e outros em que eram colocadas dúvidas quanto ao cumprimento de objetivos de prevenção geral, estende-se a possibilidade de recorrer a este instituto apenas aos casos de oferta indevida de vantagem, deixando-se de fora os crimes de corrupção passiva e recebimento indevido de vantagem.
No âmbito do instituto do acordo sobre a pena aplicável, considerou-se que a confissão que subjaz ao mesmo, para além de livre e sem reservas, deve ser integral.
Visa-se com esta alteração mitigar os riscos de negociação sobre os factos imputados (que poderiam advir da não exigência de confissão integral e da consideração como não provados factos não confessados) e evitar a adoção de soluções excessivamente complexas em termos jurídicos que podiam prejudicar a compreensão e aplicação da figura dos acordos sobre a pena aplicável.
Finalmente, acolhendo, nomeadamente, as observações efetuadas pela Associação Sindical dos Juízes
Portugueses, toma-se agora posição no sentido de que deve ser reponderada a composição do tribunal central de instrução criminal, entendendo-se que a excessiva conotação com dois juízes de perfis, pelo menos aparentemente, muito diferentes, prejudica a imagem de objetividade da justiça (que de justiça objetiva transita para justiça subjetiva – a justiça do juiz A ou B) e reduz o grau de aleatoriedade na distribuição dos processos.
Confirma-se que a ENCC não engloba o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais?
Não. Não se confirma, como resulta da resposta que dei à pergunta anterior. Não identificamos aqui um problema de omissão legislativa, mas de aplicação tempestiva e sistemática da lei.
É porventura útil esclarecer que a Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, que alterou a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais e a Lei de organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, aumentou o grau de exigência no escrutínio e clarificou as atribuições da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
Para além da necessidade de se promover uma publicação mais eficiente das contas dos partidos (medida já constante da primeira versão da Estratégia), é agora frisada a importância de se proceder a uma avaliação rigorosa e independente das condições de funcionamento da Entidade das Contas, tendo em vista a identificação de constrangimentos e adoção de soluções. Só depois desta análise fará sentido uma eventual revisão das leis, a fim de perceber, também, se estas abrangem de modo exaustivo os meios de financiamento partidário.
Qual a diferença entre a redução de pena para quem denuncie o crime já depois do processo ser aberto, como se diz que estará na versão final da ENCC, e aquilo que vulgarmente se designa de delação premiada?
Na Estratégia não se propõe instituir nem importar quaisquer soluções estranhas ao processo penal nacional, estando as designações “delação premiada” ou plea bargaining, respetivamente, associadas ao processo penal do Brasil ou dos Estados Unidos da América.
Ora, nem o sistema penal português vigente nem a ENAC preveem a possibilidade de o Ministério Público, com ou sem controlo de juiz, estabelecer negociações com arguidos, oferecendo imunidade penal em troca de informações que envolvam outras pessoas. Em Portugal já dispomos de normas que permitem ao agente do crime de corrupção não ser submetido a pena de prisão (dispensa de pena) ou ser sujeito a uma pena atenuada se colaborar com as autoridades (atenuação especial da pena) e nunca a esse propósito se falou de delação premiada.
O que a ENAC propõe fazer é uma reciclagem destes mecanismos, eliminando os obstáculos à sua aplicação efetiva.
Há alguma coisa prevista em relação à necessidade de conter os processos dentro de prazos temporais definidos ou a Lei vai continuar a deixar que qualquer diligência signifique a paragem de todo o processo – o que, nos casos de corrupção, que envolvem sempre muitos milhões de euros, é do agrado dos (grandes escritórios de) advogados? Há vontade política para que deixe de ser assim?
Entre as medidas tendentes a combater a excessiva morosidade deste tipo de processos, e com o intuito de clarificar as regras de conexão nas situações em que esta possa retardar a sua conclusão, a Estratégia propõe-se alterar o Código de Processo Penal, estabelecendo expressamente a possibilidade de o Tribunal não ordenar a conexão quando preveja, por efeito desta, a ultrapassagem dos prazos de duração máxima da instrução e prevendo-se a possibilidade de o Ministério Público não ordenar a conexão de inquéritos quando preveja que esta leve ao não cumprimento dos prazos de duração máxima do inquérito. A obrigatoriedade de agendamento prévio das sessões de julgamento vai também facilitar a organização da vida do Tribunal e dos intervenientes processuais, reduzindo os casos de adiamento de sessões. Mantemos a possibilidade de acordo sobre a pena aplicável, mecanismo que favorece a aceleração processual, permitindo a dispensa de produção da prova em julgamento quando o arguido confesse, integralmente e sem reservas.
A Lei irá evoluir no sentido de que os casos de corrupção julgados em primeira instância signifiquem logo prisão para quem for condenado? Ou manter-se-á a rotina processual de trânsito em julgado apenas após a última sentença que teve em Armando Vara um caso paradigmático?
Na ENAC não se preveem quaisquer medidas tendentes à alteração dos efeitos dos recursos. O princípio da presunção de inocência torna difícil a execução de uma pena privativa de liberdade antes de ser proferida uma decisão definitiva.
Vai ser possível em Portugal que o Estado consiga recuperar o produto do roubo nos casos de condenação por corrupção, o que, até aqui, manifestamente não tem acontecido? Que evolução haverá em relação aos arrestos dos bens de pessoas condenadas?
A Lei sempre previu a possibilidade de perda do produto do crime. E, há quase 20 anos, desde a lei 5/2002, aprofundou a dimensão da perda estabelecendo que, em caso de condenação por crime de corrupção se presuma constituir produto do crime, devendo ser declarada perdida a favor do Estado, a diferença entre os rendimentos e o património declarados pelo agente e os rendimentos e património que efetivamente detém.
Para efeito de identificação do património real foi criado e instalado na Polícia Judiciária o Gabinete de
Recuperação de Ativos.
Apesar da existência dos instrumentos tendentes à perda de bens, produtos e vantagens do crime existir há largos anos nosso ordenamento e serem amplamente reconhecidos os seus efeitos preventivos, especiais e gerais, especialmente no que à criminalidade económico-financeira diz respeito, verifica-se que o recurso a estes instrumentos por parte dos magistrados é ainda bastante desigual, nomeadamente por referência a determinadas zonas do país, sugerindo estes dados a falta de prática ou sensibilização para a sua utilização.
A evolução quanto a este tema passará, assim, por um maior investimento na formação prática dos magistrados do Ministério Público incentivando-os a recorrer mais à aplicação destes mecanismos e, possivelmente, pela orientação nesse sentido por parte da hierarquia.
Em matéria de perda de produtos e vantagens do crime e perda alargada de bens, a ENAC prevê a introdução de normas de natureza processual para os casos de perda de bens, quando o agente seja dispensado da pena.
Será possível haver em Portugal tribunais especializados na corrupção, como há na área do Trabalho e da Família?
Não. Vigora em Portugal uma proibição constitucional de criação de tribunais para julgar determinadas
categorias de crimes, pelo que no quadro da atual Constituição não é equacionável qualquer solução nesse sentido.
Com que medidas se vai pretender melhorar a transparência da informação ao alcance de qualquer cidadão?
Tendo por base a certeza de que um cidadão mais bem informado é um cidadão mais capaz de identificar e de reagir perante ineficiências, erros ou imposições sem fundamento legal ou regulamentar, em matéria de transparência na relação dos cidadãos com a Administração Pública, são muitas as medidas previstas na ENAC.
Desde a digitalização de comunicações e informatização de serviços da Administração Pública – o que terá também como consequência o acesso remoto aos processos em todas as suas fases, passando pela a disponibilização de informação sobre os responsáveis e técnicos envolvidos no processos e sobre o custo tabelado do serviço pretendido; pela criação de guias informativos com descrição dos serviços prestados pela Administração Pública e seus requisitos, prazos médios de decisão e pagamentos associados, de forma a que o cidadão possa controlar a qualidade da informação que lhe é transmitida; até à criação, no caso de serviços prestados digitalmente, duma ficha procedimental normalizada, que ofereça ao particular a possibilidade de conhecer os elementos do procedimento – prazo, custo, reações administrativas e judiciais, possibilidade de acompanhamento informático e de fazer pedidos de agilização e simplificação procedimental.
Por outro lado, na área da contratação pública, reforçando as regras de publicidade e transparência, nomeadamente com uma mais ampla publicitação do procedimento contratual através da base de dados de contratos públicos.
Quando a ISO 37001, a norma internacional que especifica os requisitos e proporciona um guia para estabelecer, implementar, manter, rever e melhorar um sistema de gestão anti suborno, será implementada em Portugal?
A Estratégia, ao tornar obrigatória a elaboração e implementação de Programas de Cumprimento Normativo (programas de Compliance), integrando planos de prevenção de riscos de corrupção, manuais de boas práticas, canais internos de denúncia e a existência de responsáveis pelo cumprimento normativo, tornando passíveis de sanção e pela não adoção dos programas e valorizando a boa execução dos programas para efeitos de graduação da sanção aplicável às pessoas coletivas, dá um importante passo na concretização da norma ISSO 37001.
Creio que, para além das sete grandes linhas definidas, a ENCC pretende prevenir, detetar e reprimir a corrupção. Que instrumentos e políticas podem ser afinadas para a deteção?
Ao nível da deteção, prevê-se, por exemplo, com a progressiva informatização dos serviços da Administração Pública, o desenvolvimento de soluções informáticas que emitam alertas em situações de comportamentos suspeitos (p. ex., criação de muitas empresas pela mesma pessoa sem justificação ou adjudicações sucessivas por ajuste direto à mesma empresa) e blindar os sistemas informáticos da Administração Pública face a acessos indevidos, internos ou externos.
Também contribuirá para uma melhor deteção de comportamentos corruptivos, a sensibilização dos cidadãos quanto à dimensão, características e efeitos deste fenómeno, através da realização de campanhas – não só nas escolas, mas também em balcões de atendimento dos serviços e organismos públicos e através de meios de publicidade institucional – que, em linguagem acessível, alertem para comportamentos quotidianos impróprios associados a fenómenos de corrupção.
A deteção através da denúncia assume também um papel crucial nesta Estratégia, quer por meio da instituição de canais de denúncia interna em organismos públicos e privados (os quais são parte integrante dos programas de cumprimento normativo), quer através da capacitação dos canais de denúncia externa existentes e sensibilização dos cidadãos para a utilização desses canais. A existência de canais de denúncia e uma adequada proteção dos denunciantes são essenciais para garantir que quem cumpre a lei e denuncia não se torna alvo de retaliações.
Neste tipo de criminalidade, em que não existe uma vítima concretamente determinada e em que são frequentes os “pactos de silêncio”, a denúncia tem um papel crucial na sua deteção. Prosseguem também este objetivo de deteção de crimes de corrupção os mecanismos de direito premial de que falámos já, que facilitam a aquisição precoce da notícia do crime.
Como se pode reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas no combate à corrupção?
O reforço da articulação entre instituições públicas e privadas no sentido de trocar informações quanto a boas práticas e novas estratégias de prevenção, deteção e repressão, nomeadamente entre as entidades que integram o Sistema de Controlo Interno da Administração Financeira do Estado, o Tribunal de Contas, os tribunais, o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal competentes, bem como organizações privadas que tenham por objeto estudar e compreender a corrupção, prevê-se que se concretize, particularmente, através da criação de bancos de dados, de uma plataforma de comunicação e da realização de encontros, iniciativas estas que ficarão a cargo do mecanismo de prevenção da corrupção.
Quais os aspetos mais positivos que entende que deveriam ser destacados na ENCC?
Sinalizaria a criação de um verdadeiro sistema de prevenção da corrupção, não só na dimensão primária (envolvendo escolas, administração pública e entidades vocacionadas para a prevenção do fenómeno) como também um regime jurídico aplicável aos setores público e privado, envolvendo sanções pecuniárias para o incumprimento dos programas de cumprimento normativo. Paralelamente, a extensão do âmbito de aplicação do instituto da dispensa da pena e a consagração legal dos acordos sobre a pena aplicável.
Mas mais do que dar destaque a uma ou outra medida, individualmente considerada, acho que o que deve ser valorizado é a circunstância de, com esta Estratégia, se ter desenvolvido uma abordagem holística, pluridisciplinar e integrada das formas de aparecimento do fenómeno e dos possíveis modelos preventivos e repressivos, envolvendo a corresponsabilização do Estado, dos cidadãos, das empresas.
Quando se conhecerá o documento na sua versão final?
A previsão que temos é que seja publicada muito em breve, com a Resolução do Conselho de Ministros a que está anexa.
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