Durante quatro dias, o Papa Francisco mandou reunir no Vaticano quase duas centenas de líderes católicos para refletirem sobre as responsabilidades da Igreja nos abusos – um eufemismo para esconder a palavra “crimes” – sexuais praticados por membros do clero.
Um encontro que se impunha face ao número crescente de casos de pedofilia que vão sendo conhecidos à medida que as vítimas vão tendo voz. Um crime que, embora não sendo exclusivo do clero, abrange muitos religiosos. Uma realidade cuja dimensão nunca será conhecida, pois, como denunciou o cardeal alemão Reinhard Marx, a Igreja manipulou e destruiu documentos que incriminavam vários dos seus membros. Uma atitude que ajudou a perpetuar a sensação de impunidade.
Um branqueamento com que Francisco não se revela disposto a pactuar. A sua intervenção inicial não permitiu dúvidas. Os 21 pontos da sua reflexão pessoal colocaram o ónus da culpa no clero que não tinha sabido estar à altura dos votos livremente assumidos e alertaram para a necessidade de medidas “concretas e efetivas”. Dito de uma forma mais clara: o ato de contrição não chega. É preciso, também, solidarizar-se com as vítimas e, não menos importante, evitar o surgimento de novas vítimas.
Uma postura que terá consequências na visão pública da Igreja. Jorge Bergoglio, um argentino elevado a bispo de Roma com o nome de Francisco, não desconhece a importância que a Igreja teve na formação do pensamento ocidental. Sabe que a nossa matriz é greco-latina e judaico-cristã. Só que também não desconhece que a possibilidade concedida ao clero de, durante séculos, falar ao ouvido dos detentores do poder temporal nem sempre foi devidamente utilizada.
Francisco recusou-se a utilizar o ativo para encobrir o passivo. Percebeu que “o santo povo de Deus” não se revia nos comportamentos desviantes daqueles a quem foi atribuída a função de conduzir as ovelhas para a salvação eterna. Uma salvação que não é compatível com a pedofilia, um crime não passível de absolvição terrena.
Por isso, assumiu que o problema não pode ficar confinado às paredes da Santa Sé. O tribunal eclesiástico, ainda que bastante rigoroso, não é suficiente. Pode decidir expulsar um membro do clero que cometeu ações não consentâneas com os votos celebrados, mas o assunto é mais profundo. Exige que a Igreja denuncie os membros pedófilos às autoridades civis.
A sanção eclesiástica não chega. Os prevaricadores têm de responder pelo crime. O hábito ou o manto não pode ser invocado como justificativo. Um membro do clero não pode estar acima do cidadão. Afinal, há quase uma dúzia de anos que a Igreja assumiu que o mal tem uma dimensão social mais do que individual. Daí que a lista dos sete pecados mortais ou capitais tenha sido acrescida de outros, entre os quais a pedofilia.
A leitura das oito conclusões-chave da reunião permite ver que Francisco já identificou as causas do problema, mas as medidas tomadas são insuficientes. Por exemplo, apesar da crise de vocações clericais, reconheceu que a seleção e a preparação dos membros do clero terão de ser mais exigentes. Só que, no século XVI, o Concílio de Trento já tinha chegado a essa conclusão.
Francisco escolheu a estrada certa. Falta saber se a hierarquia acompanha ou apenas finge seguir o sucessor de Pedro.