Como qualquer pessoa saberá, incluindo quem não a vê, a popular série televisiva “Game of Thrones” está prestes a chegar ao fim. Na madrugada de 19 para 20 de Maio será emitido o último episódio da dita, e, com ele, chega ao fim aquele que talvez seja o último exemplar de algo que até há não muito tempo ainda era bastante comum: os programas de televisão que toda a gente – ou quase – via e sobre os quais conversava.

Durante anos, a relativa escassez de canais fez com que séries como “All In The Family”, “Dallas”, “E.R.”, “Seinfeld” ou, por cá, as telenovelas brasileiras do século passado ou os programas de Herman José do tempo em que o homem ainda tinha moderada graça, fossem vistos por quase todas as pessoas que tivessem o hábito de ver televisão, e dominavam as conversas no dia seguinte. Ainda há dias, o senhor meu pai deu de caras com uma fotografia de umas férias suas no Algarve nos finais dos anos 70, com um magote de gente sentado à volta de uma televisão minúscula para poderem ver uma telenovela qualquer.

Hoje em dia já não há nada assim. Algumas séries, como “Game of Thrones”, ainda parecem dominar as conversas, mas a proliferação de canais através do cabo, e o surgimento de fenómenos como o Youtube ou a Netflix, fizeram com que as audiências televisivas se fragmentassem, o que resultou naquilo a que nos Estados Unidos se tem chamado “o fim da monocultura televisiva”: como em tempos escreveu o crítico televisivo Andy Greenwald, há cada vez mais séries para gostarmos, mas cada vez menos séries para gostarmos juntos.

Ninguém no seu perfeito juízo ou possuidor de bom gosto dirá que a qualidade das produções televisivas era superior nos tempos de “Alf” ou “MacGyver” do que se tornou com coisas como “The Wire” ou “Deadwood”. Mas essa maior qualidade da televisão de hoje não elimina uma suspeita que tenho vindo a alimentar: a fragmentação cultural associada ao “fim da monocultura televisiva” – uma fragmentação de experiências, em que todos vemos séries diferentes em alturas e a ritmos diferentes – está a ser acompanhada por algo semelhante (e perigoso) na vida política.

Veja-se o resultado das eleições espanholas deste domingo: um crescente número de eleitores tem, ao longo da última década, abandonando os principais partidos de poder em detrimento de partidos mais ou menos “anti-sistema” como o Ciudadanos, radicais como o Podemos, o Vox e os nacionalistas das várias regiões do país, ou da pura abstenção.

O mesmo se tem passado um pouco por toda a Europa (incluindo Portugal), com “os partidos maiores a ficarem mais pequenos e os partidos mais pequenos a ficarem maiores” e uma “ampla dispersão do poder político”. Afinal, o que têm sido as atribulações do Brexit senão uma manifestação dessa fragmentação política, com um “parlamento pendurado” que torna difícil a obtenção de maiorias e os partidos divididos internamente quanto ao caminho a seguir?

E embora a natureza bipartidária do sistema americano e a transformação do Partido Republicano num culto de Trump ajudem a disfarçar a coisa, o mesmo se passa nos Estados Unidos.

A dificuldade que o presidente tem tido para obter apoio para o financiamento do seu “lindo Muro” na fronteira com o México, a proliferação de candidatos republicanos nas eleições de 2016 que possibilitou a nomeação de Trump, a falta de entusiasmo dos apoiantes de Bernie Sanders com a candidatura de Hillary Clinton que talvez tenha ajudado a colocar Trump na Casa Branca, ou a renitência de muitos Democratas em apoiarem a candidatura de Joe Biden para as eleições de 2020 mostram bem como o eleitorado americano está tão fragmentado como o dos países europeus.

As razões que explicam o fenómeno são muitas, e não falta quem as aponte. Mas, sem lhe querer dar excessiva importância, não consigo deixar de pensar que o tal “fim da monocultura televisiva” também tem um papel nesta crise que afecta as nossas democracias: como não vemos as mesmas coisas, não falamos sobre as mesmas coisas, temos experiências cada vez mais diferentes uns dos outros, vivemos em mundos cada vez mais diferentes uns dos outros.

Será de espantar que também tenhamos passado a ter convicções tão profundamente diferentes uns dos outros? Que os nossos sistemas partidários sejam constituídos por cada vez mais grupos cada vez mais antipáticos entre si, cada um representando um número diminuto de pessoas?

Quando Game of Thrones terminar daqui a umas semanas, talvez acabe com os seus muitos reinos reunidos sob um rei ou rainha benevolente (embora esse final feliz não me pareça ser muito compatível com o “espírito” da coisa). Mas depois de terminar o seu último episódio, a série não nos deixará com a “monocultura” de que ainda foi representante, e tanto a nossa cultura como a vida política se assemelharão cada vez mais ao Westeros partido em inúmeros pequenos reinos em guerra fratricida uns com os outros, sem fim à vista e qualquer conciliação entre eles impossível.

Numa entrevista que deu em 2006, o ensaísta Chuck Klosterman (de uma forma bem menos apelativa do que a habitual nos seus livros) argumentou que “a aceleração e fragmentação dos media destrói o potencial para universais culturais” e que, por isso, “as pessoas acabam por se sentir alienadas pela sua própria normalidade; sentem-se sós no meio de uma multidão. E isso é um enorme problema cultural”. Como se tem visto, é também um enorme problema político.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.