59 mil palestinianos foram mortos desde 7 de outubro de 2023, entre eles mais de 17 mil crianças. As forças militares de Israel não contam no mesmo período 900 vítimas mortais. Israel conseguiu proteger os seus soldados na proporção obscenamente inversa das crianças que assassinou.
Se temem a Deus, talvez lhes deva ser recordado o profeta Jeremias: “Eles encheram este lugar com o sangue de inocentes.” Não há como contornar uma responsabilidade e uma culpa. Só não consegue protegê-los deles próprios. Desde o início de 2025 o número de suicídios entre membros das IDF tem aumentado. Há dias, um reservista no activo ateou fogo sobre si próprio. De acordo com o “Times of Israel” ele dissera à sua mãe “que via e cheirava corpos a arder”.
O outro conflito do nosso tempo, na Ucrânia, não regista mil crianças em cerca de 13 mil vítimas mortais civis. O contraste é ainda mais chocante quando comparamos o número de vítimas civis com o número de vítimas militares da guerra na Ucrânia. Terão morrido cerca de um quarto de milhão de soldados russos e entre 50 e 70 mil soldados ucranianos. Uma guerra horrível, mas que não compara com a mortandade civil com que Israel devasta Gaza, um território que perdeu perto de 10% da sua população.
Esta semana, a Agência de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) denunciou que, com o bloqueio à ajuda humanitária, as autoridades de Israel estão a matar à fome a população de Gaza, uma em cada dez crianças desnutrida, um milhão de civis em risco. Chegam notícias de vários bebés que morreram desnutridos em 48 horas. Nos campos cercados a arame farpado onde as forças de Israel distribuem comida em paletes morre-se se o arbítrio de soldados decide apontar a mira e disparar sobre a multidão composta de gente, apenas gente, desarmada e desnutrida.
O Papa Leão XIV diz que “o mundo não suporta mais a guerra”, mas nomeia apenas as três vítimas mortais do ataque à única igreja católica em Gaza. E a outra meia centena de milhar de pessoas, dezassete mil crianças? Acredito que o Papa Francisco teria tido uma intervenção mais reflectida.
Em Portugal, sucedem-se os motivos de vergonha. Mais uma tentativa de reconhecimento do estado da Palestina falhou na Assembleia da República, com os votos contra da direita parlamentar – PSD, CDS, Chega e Iniciativa Liberal. Quem disse que já não havia esquerda e direita? Ideias de um cinismo obscuro são defendidas por um partido que tem a palavra “liberal” no nome – “uma estratégia equilibrada e responsável para promover uma solução pacífica e sustentável para o conflito israelo-palestiniano”.
Diante de um genocídio, crimes de guerra apontados pelos tribunais internacionais, conjugar “estratégia equilibrada e responsável” é superlativamente hipócrita. Como o é falar de “conflito israelo-palestiniano” elidindo a menção ao genocídio, à matança a eito. Deviam lembrar-se estes partidos de direita o que este país pressionou a comunidade internacional pelo reconhecimento de Timor-Leste, o que este país se chocou com um massacre que levou a vida de três centenas de timorenses, o que este país fez por ligar o fim da violência ao direito à autodeterminação.
No bate bolas político do Governo, Paulo Rangel lembra ao PS que quando governavam, já depois de 7/10/23, não se importaram de vender armas a Israel. Estamos nisto.
Não há que fazer comparações com o passado, porque estamos na ordem do incomparável. Não comparar, deixar esse vazio a latejar-nos, ficar sem chão, nem o século passado, nem o milénio passado, nenhum outro nome senão mesmo “Gaza” é a única forma de não relativizar Gaza, encaixar, sem delegações, a tremenda responsabilidade pelo tempo que vivemos. Esse nome há-de um dia constar dos nossos dicionários para nomear não um pedaço de território do Próximo Oriente, mas uma nova forma de violência e de cumplicidade. Mas não importa nada o dia de amanhã. No domingo, foram mortos 85 palestinianos que apenas procuravam, em desespero, alcançar alguma comida. O nome Gaza tem de significar agora.
Em Gaza rompe-se a viabilidade de um território habitável, a sua continuidade como terra de um povo, matando-o ou deixando-o à morte, sem hospitais nem escolas, sem água nem comida. O êxodo apresenta-se como a alternativa única a uma versão particular de genocídio, em que um povo que não capitula de existir ali está condenado à desumanização forçada, até que morra, não importa se a tiro, de fome, de sede, de doença. Tudo isto assistido em directo, em fragmentos que nos chegam pelas notícias, pelas redes sociais, e consumidas na dose que cada um quer ou consegue suportar.
Gaza significa aniquilação de um povo com território às mãos de Israel mediante a permissibilidade dos poderes da ordem internacional e de todos nós que os elegemos. Gaza há-de significar um dia nos dicionários a aniquilação de um país com a permissão da consciência global de uma era. Quando nem aos filhos de assassinos que pudéssemos imaginar dos nossos filhos faríamos o que Israel faz às crianças da Palestina, não resta nada que possa ser comparado. É só mentalizar-nos, que é como dar o nosso corpo que pensa, sente e respira ao acontecimento que está a acontecer: um genocídio com a cumplicidade da nossa consciência global.