Um erro de tragédia grega

Houve em Portugal um erro trágico de governação que provocou, dias a fio, números de mortes por milhão de habitantes máximos à escala global. Um governo não negacionista e sério, que em muitos aspectos merece reconhecimento, um SNS heróico e bem conduzido, a quem só faltam mais recursos, não conseguiram evitar uma situação pandémica pior do que a de um país chefiado por um qualquer irresponsável populista.

Os Estados Unidos teriam de ter tido 10 mil mortes num dia e o Brasil mais de seis mil para compararem com os números de Portugal ao longo do mês de janeiro e princípio de fevereiro. Os Estados Unidos estiveram pela metade, se tanto, nos seus piores dias de calamidade, e o Brasil pela quarta parte (com base nos dados do Worldometer), mau grado tudo o que sabemos sobre como Trump e Bolsonaro encararam a pandemia.

O Janeiro e princípio de Fevereiro aterradores por que passou o país, com extraordinária capacidade de resposta do SNS, não pode deixar de exprimir uma lição política, sobretudo para António Costa, mas também para todos, políticos e cidadãos. Não se trata de comparar com o desastre populista e dizer que se foi ainda mais irresponsável. Seria falso e profundamente injusto apontar uma falha de escrúpulo político. Mas, por isso, estes números expõem o erro trágico cometido. António Costa julgou que podia manejar politicamente uma margem num intervalo onde nenhuma acção política estava constituída. Tal como numa tragédia clássica, cometeu-se a hamartia, o erro de subestimar a ignorância.

O erro não foi apenas o de se ter decidido aliviar as medidas no período natalício, mesmo com pré-aviso de que em seguida, na passagem de ano, se teria de compensar. Essa decisão foi errada, ainda que só retrospectivamente isso se tenha tornado evidente para muitos. Agora, pagamo-lo colectivamente, com escolas fechadas. E dizê-lo não é alimentar guerrilhas políticas, até porque mereceu consenso político muitíssimo mais amplo do que a base de apoio parlamentar do Governo.

Muitos, incluindo o autor destas linhas, acreditámos que havia essa margem. Em vésperas de Natal, a situação, ainda que em planalto, não evoluía desfavoravelmente. Mas foi um erro porque se acreditou politicamente que dominávamos o círculo da acção do vírus. E dessa maneira contribuiu-se para a disseminação social da mesma crença. Foram as perspectivas de uma vacinação em vias de chegar; foram os testes rápidos a entrar nas contas das famílias a tentar fintar saudades; foram, em suma, as expectativas de que o vírus já estava suficientemente conhecido e que o seu controlo total era uma questão de tempo… Só que havia estirpes novas a irromper e mesmo se não podíamos saber o seu efeito tínhamos o dever de ter isso em conta.

O que não sabemos pesa tanto como o que sabemos. Ainda hoje não sabemos se as vacinas disponíveis protegem nos casos de sintomas que persistem a longo termo (long covid) e se, continuando a circular, futuras mutações do vírus não ganharão resistência às vacinas existentes. A falha do Governo não foi a dos que desconhecem ou fazem por ignorar o que conhecemos. Isso fazem os populistas, negacionistas ou simplesmente irresponsáveis. Mas é uma falha complementar, e que devia ter sido evitada: não ter em conta, ignorar mesmo, o que desconhecemos.

Já adquirido o descalabro natalício, entrámos em Janeiro deste ano como se tudo permanecesse dentro da mesma margem de controlo. Foi como se a incredulidade paralisasse a capacidade de julgar bem. Se diante de um Rt descontrolado, a fazer explodir o número de contágios, uma grande maioria dos especialistas numa reunião do Infarmed indicou o fecho das escolas, nem que seja por precaução, não pode passar sem crítica que se tenha decidido diversamente simplesmente porque não se obteve pleno consenso.

Naturalmente, todas as razões são estimáveis, mas quando o perigo é iminente e não há margem, cabia ao Governo assumir um princípio de decisão conservador: onde não há consenso prevalece a posição mais restritiva e não a posição menos restritiva. Optando pelo contrário, o sinal transmitido à sociedade foi, de novo, o de um confinamento faz de conta quando o país já se encontrava sob condições epidemiológicas catastróficas.

Não demorou mais do que uns dias até que o primeiro-ministro mudasse de tom e trajectória e, finalmente, definisse os termos de um confinamento efectivo, com a gravidade do encerramento das escolas. Encerrar escolas é uma decisão de tal ordem grave que, cumpridas as duas semanas estipuladas, não seria admissível outra decisão senão reabri-las, ainda que em regime não presencial. O funcionamento do ensino é uma obrigação fundamental, constitucionalmente consagrada, de que nenhum governo se pode libertar.

Duas semanas de fecho das escolas significou a assunção tardia, mas que chegou, de que não havia margem. Todo o país tinha um deadline para cumprir. Independentemente de quaisquer outras considerações, a gravidade do fecho das escolas contribuiu muito para a compreensão por parte da sociedade da seriedade com que se tinha de levar este confinamento.

Governar esta pandemia é também uma lição sobre a tremenda influência dos sinais que se transmitem à sociedade, para o bem e para o mal. Esta semana recomeçaram as aulas em casa com números de novas infecções cinco e seis vezes menores do que há um par de semanas. Sabe-se que a mobilidade baixou 66%. Oxalá se possa regressar, quanto antes, ao ensino presencial. Como no Reino Unido, onde já se noticia o recomeço das aulas presenciais no início do próximo mês.

A pressa do velho normal ou o erro estratégico

De uma certa perspectiva, o Governo não leu mal, na avaliação das políticas ao seu alcance, o que deveria fazer: acreditou na capacidade do SNS de dar resposta à pandemia sob a liderança de uma ministra de excepção, Marta Temido; e não cometeu o erro, bem conhecido de um passado ainda recente, de subtrair rendimento aos portugueses. Valha-nos isso. O equilíbrio difícil entre contracção económica inevitável e tentativa de segurar o rendimento dos portugueses não pode ser perpetuado, mas é o único lance viável, enquanto não se debela a crise sanitária. Contudo, sempre que uma brecha surgiu, e a oportunidade de por ela respirar, cometeu-se o erro de correr para o velho normal e, assim, ignorar a necessidade de mudança.

Foi assim no último Verão, quando o regozijo cívico com a vitória sobre a primeira vaga confundiu urgência de recuperação económica com fronteiras abertas, na ânsia da retoma do turismo de todas as partes da Europa e do Mundo, como se nada tivesse mudado e pudéssemos simplesmente voltar aos tempos pré-pandémicos. Os sinais políticos errados dados pelos mais elevados representantes – Presidente, primeiro-ministro, também Presidente da Câmara Municipal de Lisboa – foram socialmente lidos da pior maneira possível, desbaratando-se depressa a vantagem geográfica de que o país dispunha.

Não é que possamos ser territorialmente uma jangada de pedra a cruzar o oceano, mas com controlo de fronteiras adequado, e beneficiando da condição continental de extremo ocidental, com fronteira terrestre apenas com Espanha, podíamos ter agido politicamente como se o território fosse insular. Foi o que fez a Finlândia na sua península, com resultados apreciáveis. Mas também foi precisamente o que sempre resistimos a fazer, todo o esforço político muito mais dirigido à reposição rápida do velho normal do que à criação de uma nova normalidade.

E este é o segundo erro, já não com a dignidade das tragédias gregas, mas da falta de visão de que há uma reflexão a fazer sobre a natureza do back to business. Não há restabelecimento da normalidade económica sem uma compreensão da necessidade de mudança, como consequência directa da pandemia ou mesmo apenas a pretexto desta. Mudança em direcção a uma economia global menos extrativista, com menos pegada ecológica, não fazendo do objectivo da sustentabilidade apenas um artifício para prolongar as mesmas más práticas.

Por exemplo, se a pandemia deixou a aviação civil em terra, é bom pensarmos duas vezes, com os pés na terra, antes de retomarmos viagens por dá cá aquela palha. Atravessar meio planeta para ir assistir a um congresso ou importar por avião produtos de consumo eram já parte do problema antes da pandemia. Em 2019, a capacidade anual do planeta para regenerar os recursos naturais consumidos foi apenas até ao dia 29 de Julho, tudo o que é gasto daí para a frente ficou a descoberto. Construir aeroportos nos tempos que correm é uma variante do negacionismo. Há uma mudança de hábitos a fazer.

Do mesmo modo, o colapso do turismo nas grandes cidades gentrificadas devolveu a possibilidade de quem nelas trabalha poder também nelas tornar a viver, com o preço de habitação a baixar. Não se trata de banir o turismo, mas de o fazer parte da conta mais ampla com que se fazem cidades inclusivas. É um erro estratégico quando, em vez de ir agindo nesta direcção, com um sinal de urgência, pelo contrário se toma a urgência como pressa por voltar ao mesmo.

O erro da cacofonia

Sem querer ser injusto para quem está a dar o melhor de si em funções de responsabilidade, e no limite da exaustão, o Governo tem sido permeável a um equívoco nos seus processos de fundamentação da decisão. É a cacofonia da opinião relevada, com demasiadas partes a serem auscultadas, como se em vez de opiniões pertinentes importasse ao Governo ter representadas as opiniões dos diversos quadrantes de algum modo afectados.

Tem de se ouvir todas as partes é certo, mas no âmbito próprio. A importância da opinião das diferentes partes da sociedade não se traduz em pertinência da sua opinião para informar a decisão governamental em contexto de emergência. O conflito de opiniões é tanto maior quanto mais elas exprimem a representação de interesses, e aí o que acaba por pesar é mesmo a representação. Não se organiza um gabinete de crise à imagem e semelhança de uma reunião de concertação social. Por mais que esta também faça falta em crise, são duas ordens de decisão distintas. A concertação deve procurar satisfazer todas as partes, um gabinete de crise que decide avançar ou não para um confinamento, e em seguida dele sair, deve garantir a resposta que mais garantias dá no controlo da pandemia, o que não se faz satisfazendo todas as partes, por vezes não se pode mesmo satisfazer nenhuma.

A inconsistência com que se fez da diversidade de opiniões motivo para seguir a opinião mais liberal tem muito que ver com este erro. E é parte da explicação para o Governo ter tardado em indicar o confinamento quando o maremoto de casos já havia entrado país adentro. Foram aceites cedências de risco a troco de nada comparavelmente importante em termos de emergência.

Por exemplo, ainda há dias, com o confinamento em vigor, foi o protesto de autarcas dos concelhos fronteiriços contra o encerramento das fronteiras. Argumentaram que a solução é ineficaz, subestimando o impacto que não conheciam sobre os interesses que procuram proteger. Como a restauração, que tudo fez por abrir, mas sem perceber que tudo o que abrisse apenas significaria mais tempo de encerramento. Ou as universidades que, por elas, mantinham avaliações presenciais. Percebe-se o desespero do tecido empresarial de pequena dimensão, que apenas tenta sobreviver. E o das famílias que, vendo os seus filhos em casa, receiam pelo seu direito à educação.

A pressão que vem de todos os lados tem de ser compreendida, os piores efeitos minimizados, a quem governa cabe prosseguir apesar dos erros, assumi-los e vencê-los. Não por si, mas por nós. Nunca, na sua história contemporânea, de democracia, as fundações do regime do país foram tão testadas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.