No início da democratização do uso da internet, a rede era, antes de tudo, um agregador de informação. Estávamos ainda longe da proliferação das redes sociais, já havia alguns fóruns muito restritos, mas a primeira fonte pública de vox populi eram as caixas de comentários anónimos dos jornais online.

Em cada uma das nossas bolhas de conforto, lendo um scroll infinito de comentários fascistas, retrógrados, misóginos, racistas, genocidas, homofóbicos, olhávamos uns para os outros e questionávamo-nos: “De onde saiu esta gente?”.

Distraídos de uma vida real desconhecida, lá íamos ignorando uma ampla minoria. Com o tempo, essas opiniões deixaram de ser anónimas, personalizaram-se nas redes sociais, são amplificadas pelos mecanismos de inteligência artificial dos algoritmos porque garantem mais audiência, formaram programas políticos, e, actualmente, fazem parte da governação.

Por mais que o Governo discurse sobre “humanizar” as políticas de imigração, sobre “novos portugueses” ou que o crime não tem “nacionalidade, cor de pele, religião ou etnia”, o fim da manifestação de interesse, as limitações de acesso ao SNS a cidadãos estrangeiros sem documentos de permanência no país, e as acções da polícia comunicadas pelo primeiro-ministro e demais membros do executivo sobre a população imigrante e das periferias das cidades, tudo isto são evidências da dissonância entre o discurso e a prática.

Como vários analistas têm afirmado, não foi necessário o Chega instalar-se no poder para que parte do seu programa se torne efectivo, de mão dada com outras ideias populistas. Por estes dias, foram os imigrantes e as populações da periferia, em breve continuarão a ser as mulheres, os ciganos, os pensionistas, os homossexuais e os pobres no geral.

O populismo é também uma resposta política à democratização do conhecimento, usa a emoção e a criação de barricadas entre pessoas, de modo a continuar a reconfigurar o sistema capitalista para que os mais ricos possam ser ainda mais ricos. Enquanto crescia, dizia-se que o volume de negócios da General Motors era igual ao PIB da Dinamarca. Hoje, a fortuna de Elon Musk é maior que a economia do país que o viu nascer, a Africa do Sul, com mais de 60 milhões de pessoas.

Ainda esta semana, a Fundação Francisco Manuel dos Santos anunciou que um quinto da população portuguesa vive em situação de pobreza, o que faz de Portugal um dos países mais desiguais da União Europeia.

Agora seria o momento certo do texto para explicar em números o porquê de as políticas anunciadas serem contra uma economia para todos, mas os nossos caminhos não têm destino só por aí, também há algo óbvio a montante dos números: as pessoas, sua dignidade e justiça, porque uma sociedade baseada nesses valores será sempre sustentável e coesa.

Temos que investir mais nesta narrativa.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.