Nas últimas semanas, várias têm sido os apelos à constituição de um governo de salvação nacional. O Presidente, na mensagem ao país sobre a sétima renovação do estado de emergência, rejeitou tal caminho sem rodeios.

A questão não é se Portugal precisa de ser salvo – facto que é mais ou menos pacífico –, mas sim se o Presidente pode patrocinar um governo com semelhante natureza. Ou seja, um governo não sustentado num partido político ou numa coligação. Não se sabe bem se apartidário ou multipartidário, mas um governo mais técnico do que político e que tenha com propósito conduzir Portugal para fora da aguda crise em que se encontra.

A Constituição permite ao Presidente demitir o Governo em funções, ouvido o Conselho de Estado, se considerar que “tal se torna necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas” (195º, nº 2). Não o pode demitir apenas porque não concorda com as suas políticas ou porque considera que está a governar mal. É preciso mais do que isso: funcionamento irregular das instituições.

A gestão errática da pandemia e os atropelos ao plano vacinação podem indiciar que as instituições não estão a funcionar como deviam, mas são no essencial problema de má governação. Assim como é sinal de falta de planeamento a publicação, a 4 de fevereiro, de uma autorização de despesa relativa à aquisição (por ajuste direto) de computadores para os alunos mais carenciados seguirem as aulas online.

No entanto, do ponto de vista constitucional, o homicídio de Ihor Homeniuk e até o escândalo da nomeação do Procurador Europeu João Guerra – sem que de ambos os casos se tenham extraído ilações políticas – são mais relevantes. Tal como, naturalmente, o rol de inconstitucionalidades que têm sido cometidas, desde as restrições à liberdade de circulação fora do estado de emergência, até à recente proibição de ensino online nas escolas privadas.

Acontece, porém, que este poder presidencial de demitir o Governo, reconfigurado nos termos restritivos acima descritos pela revisão constitucional de 1982, não permite resolver problema nenhum. Por isso, nunca foi usado e, provavelmente, nunca o será. Na realidade, foi a forma que os partidos encontraram, ao tempo, para camuflar a redução de poderes que estavam a impor ao General Ramalho Eanes – justamente por este ter ensaiado, ainda que sem sucesso, três governos de iniciativa presidencial.

André Gonçalves Pereira chamou à reconfiguração deste poder uma “mentira piedosa” (O Semipresidencialismo em Portugal, 1984, p. 62). Anos mais tarde, Marcelo Rebelo de Sousa disse a mesma coisa, embora por outras palavras (O Sistema de Governo Português, 1992, p. 54).

A razão da inutilidade deste poder é simples: de nada serve atirar o Governo fora se a sua base de apoio no Parlamento continuar a existir, seja ela uma maioria absoluta ou uma maioria relativa sem alternativa credível. Das duas, uma: ou o Governo tem apoio parlamentar (ainda que inconstante) e de nada adianta o Presidente demiti-lo e tentar trocá-lo por outro; ou o Governo não tem apoio parlamentar e será a própria Assembleia a apontar-lhe a porta da rua (através de moção de censura ou inviabilizando a governação).

Nas presentes circunstâncias, demitir o Governo conduziria o Presidente (e o País) a um beco sem saída. Ou melhor, a um beco do qual apenas se poderia sair com a dissolução da Assembleia da República, com toda a instabilidade inerente.

Forçado a coabitar politicamente com o Executivo em funções, a alternativa que o Presidente reeleito tem é ser ele próprio o governo de salvação nacional, acordando a componente presidencialista que o semipresidencialismo português – aliás de inspiração francesa – sempre teve, mas que tem andado meio adormecida. Se num contexto de normalidade o Chefe de Estado preside, mas não governa, a verdade é que em estado de exceção constitucional ele tem governado cada vez mais: através dos decretos que declaram o estado de emergência e, mais recentemente, colocando militares à frente da operação de vacinação.

Se dúvidas houvesse, bastaria ler com atenção o último decreto presidencial e, em particular, a seguinte passagem, sobre as escolas: “deverá ser definido um plano faseado de reabertura com base em critérios objetivos e respeitando os desígnios de saúde pública”. Assim o Governo consiga cumprir.