Lembro-me de há uns anos ter tido um pequeno debate com uma amiga da minha irmã nas redes sociais. Eu perguntava-me sobre a atualidade e a necessidade de um dia da mulher, e do outro lado ela respondia-me (se não me falha a memória) sobre a importância simbólica de atualizar a luta contra as desigualdades e de recordar todas as batalhas e direitos conquistados pelas mulheres com tanto esforço, mobilização e união.
Já não sei que ano corria, mas estou segura de que ainda vagueava na ingenuidade de quem sempre levou a sua avante e de quem não conviveu com as desigualdades mais grosseiras. Nesse contexto, a celebração oca e paternalista de um dia que parecia querer acariciar o lado mais vulnerável do género com que me identifico fazia-me uma confusão tremenda. E, de facto, na escola pouco ou nada se falava sobre os direitos civis que as mulheres foram conquistando, mas principalmente dos tantos outros que estavam ainda por conseguir. Na altura e para mim, a igualdade era um dado adquirido: eu não era menos que o meu irmão, nem o meu pai mais que a minha mãe. E não são.
E cresci nessa família em que a minha mãe e avós nunca me pareceram discriminadas e em que a maior parte de nós somos mulheres com percursos aparentemente próprios, felizes e livres. E eu, boa aluna desde sempre, tinha a meritocracia e a classe social a salvaguardarem-me dessa exposição à desigualdade com base no meu género. Mas isso não é igualdade, é privilégio. E, de facto, esse privilégio esconde os assédios que sofremos, quer eu, quer a minha mãe. Também tornam invisíveis a divisão de tarefas no âmbito privado, familiar, pessoal. E por fim, não nos protegem dos piropos, ou da reflexão que nos leva a usar esta ou aquela roupa. Como dizia Carol Hanisch: “O pessoal é político”.
“Porque o trabalho invisível de que toda a sociedade depende é ‘naturalmente’ atribuído às mulheres: o cozinhar e alimentar, o limpar, o cuidar, o cozer e vestir. Ou ainda porque são as mulheres as que mais sofrem assédio laboral, assédio sexual ou ainda com atitudes paternalistas e patriarcais nas estruturas hierárquicas altamente masculinizadas”.
Voltando ao debate, a análise do dia da mulher que eu conhecia à altura estava acertado, a celebração vazia da minha existência não fazia sentido: eu não era mais que os homens. Mas faltava a profundidade da análise estrutural. Das diferenças no “pessoal” e também do trabalho reprodutivo, com o seu carácter altamente discriminatório, porque não remunerado – ou pior remunerado – e porque votado tendencialmente às mulheres. Porque quando entramos em recessão, as pessoas mais vulneráveis e com empregos mais precários, são também elas, as mulheres. E porque o trabalho invisível de que toda a sociedade depende é “naturalmente” atribuído às mulheres: o cozinhar e alimentar, o limpar, o cuidar, o cozer e vestir. Ou ainda porque são as mulheres as que mais sofrem assédio laboral, assédio sexual ou ainda com atitudes paternalistas e patriarcais nas estruturas hierárquicas altamente masculinizadas – a Assembleia da República com as quotas há muito instituídas não é exceção, imaginem se estas não tivessem sido conquistadas.
Mas mais fatídico é perceber que a violência doméstica continua a vitimar tantas mulheres em Portugal. E que existe uma conivência atroz e grosseira de um dos poderes do Estado, aquele que deve zelar pela proteção e segurança de todos e todas por igual. Sim, a benevolência com que os magistrados encaram a violência doméstica e a violação são ultrajantes e são a imagem clara da negação do machismo em que vivemos. A ideia de poder ter tido ou vir a ter o azar de levar com uma moca de pregos na cabeça por ter sido infiel, ou de ser perseguida por ser autodeterminada e isso ser desculpabilizado é uma bestialidade que de facto remonta à idade das trevas, mas continua bem presente no nosso quotidiano. Eu de facto tinha razão, sou igual ao meu irmão – e também à mulher infiel. Não considero que nenhuma delas seja um crime, nem que deva ser menos protegida nos meus direitos e na minha integridade física, seja por ser mulher, ou por ser infiel, ou por fazer com o meu corpo o que bem entender – já que é meu.
De facto, claramente e infelizmente, na minha adolescência já sabia muito mais que várias bestas que aí andam, incluindo os mais “dignos” magistrados deste país. O problema é que são estes que continuam a julgar e a relativizar a violência física e psicológica que as mulheres sofrem porque são mulheres e não homens. Ou Neto de Moura decidiria de igual forma se o caso fosse invertido? Teria a mulher igual tratamento e legitimação ao fazer a justiça que achasse pelas suas próprias mãos ao ser traída? E acharíamos nós isso bem? Pois não. Muito menos o deveria achar qualquer juiz, a Associação Sindical de Juízes ou o Conselho Superior de Magistratura.
E sim, amanhã não celebramos o dia da mulher ou apenas nos manifestamos. Por várias razões e por atrasos de séculos, começámos no ano passado ao nível internacional e transpomos este ano para o nível nacional uma greve feminista. Porque a desigualdade nos direitos das mulheres é uma realidade ainda dos dias de hoje, quando tantas nascemos com a promessa de que assim não seria, e tantas outras nasceram com a certeza de que muito caminho ainda havia a fazer. E convergimos todas nessa certeza: a luta não está ganha, o mundo pára sem nós e as ruas, essas são de facto nossas. Amanhã, no próximo ano e nos restantes, até que a igualdade seja essa promessa de ontem nos dias de hoje.
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