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Guerra comercial: Ocidente aposta tudo no bom-senso entre Estados Unidos e China

Braço de ferro entre Washington e Pequim é o tipo de cenário no qual ambos os lados em confronto têm muito a perder. Com o inconveniente, para o lado de Trump, de que o presidente norte-americano tem pela frente num ciclo eleitoral para assegurar a reeleição, enquanto Xi Jingping é poupado a tais formalidades.
29 Junho 2019, 16h00

Não é nenhuma garantia, mas as opiniões sobre a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, quando recolhidas a Ocidente (na União Europeia), tendem a enfatizar que o bom-senso acabará por prevalecer. Um prognóstico que tem por base a evidência de que uma guerra comercial de longa duração não beneficia ninguém – e em primeiro lugar, por maioria de razão, os dois principais implicados.

Os números macro emanados das duas economias envolvidas dão disso nota insofismável: a pujança da economia norte-americana era mais evidente no momento em que Donald Trump, contra todas as expectativas, se tornou o inquilino da Casa Branca; e na China a fase do crescimento a rasar os dois dígitos está transformada numa memória de grata recordação.

De algum modo, o bom-senso do lado dos Estados Unidos surgiu repentinamente como uma obrigação de política interna, quando os primeiros sintomas de alarme soaram com estrondo, consubstanciados no anúncio (no final do ano passado) de que a poderosa General Motors iria fechar sete fábricas (quatro nos Estados Unidos) e despedir 15% da força laboral no país de origem (14 mil empregados), para conseguir cortar até 2020 seis mil milhões de dólares (5,2 mil milhões de euros) nos custos de operação.

Trump ficou furioso – chegou a dizer num tuíte que estava “dececionado” com a GM, tendo incentivado os seus responsáveis a reverterem a decisão – mas em determinada altura lá lhe terá passado pelo espírito que as novas tarifas à importação de aço e alumínio haveriam de ser, ao menos em parte, responsáveis por tão drástica decisão.
Mas, contra esta ótica, como disse ao JE Filipe Garcia, responsável da Informação de Mercados Financeiros (IMF), está o ‘timing’ da China: a aproximação do bom-senso à Casa Branca obedece indiscutivelmente, e entre outras razões, ao ciclo eleitoral – Trump tentará para o ano ser reeleito, coisa que em princípio não lhe será difícil de conseguir – mas Xi Jinping, o presidente chinês, não tem que se preocupar com essa maçadora invenção ocidental.

A vingança do chinês

O embaixador Francisco Seixas da Costa, em declarações ao JE, enfatiza esta evidência. “Os chineses têm mais paciência”, diz, usando um eufemismo que pretende evidenciar que, se algum dos lados conflituantes tem tempo e não está acossado por políticas internas para mostrar ‘serviço’, é a China e não os Estados Unidos.

Ou seja, há sempre a hipótese – neste momento apenas académica – de a China deixar o tempo correr, como forma de se vingar dos Estados Unidos (responsáveis pelo eclodir da guerra comercial) e, já agora, de tentar baralhar as contas da corrida presidencial de 2020. Se Pequim escolher esta opção, nada mais tem de fazer que ir ‘atirando’ dinheiro para cima do problema e esperar sentada que Washington entre em estado de sítio.
Mas isso seria colocar em causa uma estratégia de desenvolvimento interno, mas principalmente de construção de uma economia enquanto potência planetária, num risco que Xi Jinping decerto não está interessado em correr.

E regressamos ao bom-senso.E essa é a saída por que todos esperam: para Filipe Garcia, é claro que ninguém sai a ganhar com este estado de guerra. A não ser em casos pontuais, de que dá um exemplo: um grande produtor como o Brasil, no caso da soja, pode conjunturalmente ganhar com o bloqueio dos seus concorrentes, mas, a prazo, não é um bom negócio.

No caso português – que não é um produtor relevante em nenhum setor (salvo talvez o vinho) – não há nenhuma evidência de que o país possa vir a ganhar o que quer que seja. Mesmo que já haja um estudo de um banco (há sempre um estudo de um banco) que diz que Portugal é um dos maiores beneficiários da guerra comercial. “A prazo não há beneficiários, isso é uma visão medieval”, refere Seixas da Costa.

Salvar a face

Mas para sair de uma guerra não chega deixar cair as armas e virar costas e muito menos deixar o campo de batalha esperando que ninguém dê por isso. “É preciso salvar a face”, diz Filipe Garcia, e construir uma arquitetura que suporte a passagem para outra fase do relacionamento entre contendores.

“Em princípio o bom-senso prevalece, mas a resposta de curto prazo será ao nível da política monetária e no médio prazo ao nível da política fiscal”, refere o responsável pelo IMF. Ambos os comentadores enfatizam que a guerra comercial surgiu como resposta a uma “promessa eleitoral”. Trump prometeu, entre outras coisas, acabar com o astronómico défice comercial com a China – e, mesmo que não venha a conseguir tal desiderato, a guerra comercial é mais que suficiente para provar que tentou, por todos os meios que tinha ao seu alcance.

Para Seixas da Costa, “Trump adora negociar, é o seu lado de homem de negócios” – e tem um registo “que se pode encontrar em vários dossiês que lhe estão associados (Coreia do Sul, Canadá, NAFTA, México)”: entrar com todas as forças, como se tivesse pela frente um adversário já exangue, e depois aliviar até ao consenso.

Esse alívio terá, do ponto de vista interno, de ser acompanhado por qualquer coisa que permita acomodar os resultados da guerra comercial, sejam eles quais forem. Filipe Garcia descobre o rastilho do que aí estará para vir: “A resposta a esta desaceleração económica que tem a ver com as tarifas mas não só, já se nota ao nível do discurso da política monetária e fiscal: gastar dinheiro. A China já começou a pedir emprestado ao mercado para gastar dinheiro em infraestruturas e nas empresas. Uma das promessas de Trump para este mandato era a recuperação das infraestruturas e isso é um tema que ficou adormecido até agora. Não me surpreenderia nada que o tema fosse lançado algures entre o final deste ano e o início do próximo como a grande bandeira”.Reanimar a economia é o que está em causa. “Vai haver espaço para o desenvolvimento de politicas expansionistas ao nível de gastos públicos. O panorama na zona euro é convidativo: veja-se o caso da Alemanha, que faz emissão de dívida em que paga menos que aquilo que pede [juros negativos]. Há todo um incentivo a que os Estados gastem dinheiro para relançar a economia”, diz ainda.

Nesse quadro, haverá uma resposta dos bancos centrais: “O Banco Central Europeu já deu a entender que não subirá as taxas nos próximos tempos e até injetará liquidez através de novos leilões de longo prazo que irão ocorrer já este ano; e do lado da Reserva Federal dos Estados Unidos há um claro discurso de que não haverá subidas e até pode haver cortes”, como Trump praticamente impôs a um Jerome Powell, que ainda esboçou uma tentativa de o contrariar. “E até pode ser que seja já para a semana”, antecipa.

Sobrevive, mesmo assim, uma questão: valeu a pena tanto reboliço? A pergunta só tem uma resposta, que para já é impossível de encontrar: como será a evolução do défice da balança comercial dos Estados Unidos com a China. Mas os analistas antecipam que em princípio os efeitos, em termos de posição relativa das duas economias, não deverá sofrer qualquer substancial alteração.

O bom-senso diz precisamente isso: como a cada aumento de tarifas de um lado o outro lado responde com um aumento de dimensão em tudo semelhante, o saldo final tenderá a ser ‘zero’. E ninguém pode dizer que foi tempo perdido: a guerra comercial tem sido um poderoso elemento de debate e troca de ideias – o que tende a ser sempre bom. Por muito pouco poderia comentar-se que “tudo está bem quando acaba bem”.

Huawei for ever

À guerra comercial está subjacente outro problema “que está para além dela, mas sempre presente: a Huawei”, ódio mais evidente de Trump e um dossiê que tem sido o foco escondido da batalha, como dizia Filipe Garcia. Em causa está a internet das coisas e um manancial de dados que implica um antes e um depois do 5G.

A guerra dos Estados Unidos com a empresa de telecomunicações tem um dos epicentros na Europa – que, neste particular, está absolutamente desprotegida: é quase como se a escolha fosse entre ser espiado por tecnologia chinesa ou por tecnologia norte-americana. “A escolha da Europa só pode ser uma, até por causa das ligações cada vez mais próximas entre a Huawei e a Rússia”, afirma Filipe Garcia.
“A Huawei é um caso à parte, tendo em conta as especificidades do tema – que é mais importante do que parece.

Quem controlar os dados – que não é só piratear – quem tiver acesso à medida das coisas”, terá uma grande vantagem competitiva. “Só o facto de quem tem as infraestruturas ter a possibilidade de medir o que está a acontecer já é relevante, tem muito mais profundidade que a guerra comercial”.
E essa é uma frente digamos que colateral da batalha, onde aparentemente o bom-senso acaba por não estar presente na mesma medida que na ‘tradicional’ frente da guerra de tarifas. É que, neste ponto, do que se está a falar, como a administração Trump tem enfatizado, é de segurança interna. E também de aliança transatlântica entre velhos conhecidos ocidentais.

O problema (para os norte-americanos) é que ainda não é evidente para que lado cairá o ‘coração’ dos europeus. Trump voltou a insistir no tema aquando da sua visita ao Reino Unido, mas, para já, o presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler alemã Angela Merkel, entre outros, preferem não dar nenhumas garantias.

E este pode bem ser um campo de batalha onde o presidente norte-americano pode averbar um pesada e potencialmente sonora derrota.

Artigo publicado na edição nº 1993, de 14 de junho do Jornal Económico

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