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‘Guerra’ de preços baixa qualidade na arquitetura em Portugal

Depois da crise, a concorrência feroz dos ‘sobreviventes’ da classe dos arquitetos, assentou sem consciência ou ética profissional, numa implacável ‘guerra’ dos preços, originando uma quebra na qualidade dos projetos.
21 Janeiro 2019, 07h30

O mercado imobiliário está de novo com grande dinamismo, desde a reabilitação à construção de projetos de raiz, o que tem vindo a proporcionar mais emprego no setor e a criação de novas empresas. Nos vários segmentos de atividade, os números têm sido animadores e as associações estão mais otimistas. Umas das classes profissionais mais afetadas durante o período de crise foi a dos arquitetos. Muitos gabinetes fecharam portas ou reduziram substancialmente os seus colaboradores, um número elevado de arquitetos encontraram emprego no estrangeiro e os cursos começaram a perder estudantes.

Com o novo impulso do imobiliário, os trabalhos de arquitetura voltaram aos estiradores, no entanto, a classe profissional confirma que nem tudo está bem nesta profissão, bem pelo contrário. As regras mudaram e os projetos arquitetónicos deixaram de ser valorizados. Além do retrocesso na lei, com a possibilidade de outros profissionais assinarem os projetos, os próprios arquitetos queixam-se com o desequilíbrio dos preços entre a classe. Sem uma tabela de honorários, alguns gabinetes conseguem apresentar valores muito abaixo da concorrência. Instalou-se a ‘guerra’ dos preços no seio da arquitetura.

O Diário Imobiliário questionou alguns dos gabinetes e todos são perentórios, a redução nos honorários para projetos arquitetónicos baixa a qualidade da arquitetura em Portugal. Um problema que é considerado grave por todos os profissionais.

Qual o impacto do dinamismo do imobiliário na arquitetura?

Uma voz crítica com profundo conhecimento com anos de experiência, o arquiteto João Paciência, garante que este crescimento do mercado imobiliário veio dar maior protagonismo a gabinetes de advocacia de vária dimensão e de muitos grupos de mediação imobiliária, havendo nestes últimos também já alguma oferta simultânea de prestações de serviços de arquitetura , “facto que de certo modo bloqueou a chegada de muita dessa potencial encomenda aos gabinetes de projetistas já instalados”.

“Daqui poderá facilmente entender-se que, se por um lado existiu de facto o referido dinamismo, ele não terá tido correspondente impulso aos gabinetes mais experimentados (com as exceções que sempre confirmam a regra), e logo aí e também por esse facto, uma eventual distorção na determinação dos respetivos honorários, que como é sabido há muito deixaram de estar definidos por tabelas oficiais”, explica o arquiteto.

Para Paulo Martins Barata, sócio do atelier Promontorio, o retorno à atividade pelos ‘sobreviventes’, foi feito com base numa concorrência feroz, sem qualquer consciência ou ética profissional, “em verdadeiro regime de guerrilha urbana. Costumo brincar com os meus amigos advogados e consultores e fazê-los imaginar um cenário em que a PLMJ, a VdA e a Morais Leitão, ou em consultoria entre a McKinsey, a BCG e a AT Kearney, entravam em leilão de preço de horas de sócio. Seria obviamente impensável, mas na arquitetura é exatamente isso que se passa”.

Já Rodrigo Sampayo, partner e arquiteto da Openbook Architecture, refere: “O que se passa é que o mercado paga muito mal aos profissionais comparativamente com outras profissões de valor acrescentado, como são por exemplo o caso dos advogados ou dos médicos. Quando se praticam preços muito baixos, é notório que algo não vai bem, visto que ou não se paga adequadamente aos colaboradores ou não se tem um enquadramento legal adequado, ou então ainda, não se dedica o tempo que um projeto necessita para produzir um produto final de qualidade. Para todos os efeitos, o cliente deverá fazer uma análise aprofundada da proposta, de modo a verificar se está realmente a comprar um serviço de qualidade ou um 3D atrativo, mas cuja qualidade final não é a adequada nem aquela que irá satisfazer o cliente e ir ao encontro dos seus objetivos”.

A ‘guerra’ dos preços

Esta situação de desequilíbrio dos honorários aos arquitetos desconsidera de forma grave o exercício da profissão, na opinião do arquiteto Miguel Saraiva, CEO and Founder da Saraiva & Associados, realçando que a responsabilidade desta situação não é apenas dos projetistas – arquitetos, engenheiros e outros profissionais da área do projeto, mas também de quem contratada. “Estes, não valorizam o projeto, considerando demasiadas vezes, que o mesmo é um mal necessário, não reconhecendo assim que um bom projeto é a ignição para um bom negócio. Fácil é perceber que só com um projeto de qualidade se pode garantir a máxima capacidade construtiva e a melhor funcionalidade, aliadas a uma linguagem arquitetónica marcante e apelativa”, explica.

O arquiteto Duarte Pinto Coelho, sócio da Fragmentos, salienta que de facto existem alguns colegas que praticam preços abaixo dos orçamentos justos, “mas esta é uma questão sempre existiu”. Na sua opinião, a crise que se fez sentir, veio criar uma nova realidade, uma vez que começam agora a existir muitos pequenos ateliers que tinham desaparecido e que, dado os seus pequenos encargos, conseguem praticar preços mais baixos. Por outro lado, o receio da anterior crise que levou os valores de honorários para níveis absurdamente baixos, leva ainda muitos profissionais a cobrar bastante abaixo do valor real do trabalho que produzem. “Como este crescimento do mercado se fez à custa do investimento da reabilitação e muito pouco de obra nova, põe os grandes e pequenos ateliers a competir para os mesmos clientes, o que leva a grande desigualdade dos valores praticados, em parte devido à grande diferença de encargos de uns e de outros”, esclarece.

Na sua opinião, os valores hoje praticados, ainda estão longe dos que eram praticados há 10 anos atrás, “o que por si só, revela bem como a nossa atividade ainda está longe de ser paga de acordo com o seu real valor e como prova disso temos os ordenados que os arquitetos recebem, ainda ao dia de hoje”.

O arquiteto Nuno Malheiro, CEO da Focus Group partilha da mesma ideia. “Há muitos arquitetos que sem uma equipa fixa e sem custos fixos, não resistem a baixar os valores dos honorários para conseguir angariar projetos, o que distorce e destrói o mercado e, mais grave, perde-se o respeito que alguns clientes possam ter por esta profissão”.

Projetos perdem qualidade

Todos são unânimes em afirmar que esta ‘guerra’ baixa a qualidade dos projetos. Miguel Saraiva explica que a qualidade de um projeto só se consegue com uma equipa multidisciplinar, constituída por técnicos de alta competência, que dediquem o tempo necessário à conceção e desenvolvimento das melhores soluções em estudo para o empreendimento.

“Acresce o facto de o cliente sempre pretender que o projeto seja elaborado num tempo normalmente demasiado reduzido, o que não permite muitas vezes aprofundar o estudo das várias soluções possíveis e amadurecer e compatibilizar as soluções encontradas por toda a equipa, se a mesma tiver uma dimensão reduzida. Pelo exposto se reconhece que a qualidade e o prazo são totalmente incompatíveis com o ‘dumping’ dos preços. Resumindo, baixar preços é apenas possível à custa da redução da qualidade da prestação ao nível do projeto e atividades complementares”, admite.

O tempo de maturação para o projeto é de facto uma das fases mais importantes para um bom projeto arquitetónico e todos os profissionais revelam que é fundamental. “Em arquitetura não há substituto para o tempo. Uma arquitetura de qualidade depende de uma reflexão profunda e de um forte investimento no detalhe, e ambas traduzem-se em tempo e em custo. A produção de projetos sob honorários reduzidos não tem como não resultar em arquitetura genérica e superficial”, salienta o arquiteto Tiago do Vale. Este profissional alerta mesmo que com valores demasiados baixos torna-se inviável fazer arquitetura de qualidade, que depende de um investimento de tempo e recursos substancial, o que naturalmente causa alguma frustração em quem defende o valor da boa arquitetura.

Paulo Martins Barata, adianta ainda que pelo caminho ”fica a sensibilidade crítica, o trabalho analítico e especulativo, o rigor do desenho, enfim, os aspetos invisíveis do projeto mas que na verdade são o que os qualifica como ‘boa arquitetura’”.

Segundo João Paciência, um arquiteto deve ter a capacidade criativa e técnica de encontrar a melhor solução para cada programa, acrescentando necessariamente mais-valia ao produto que deve desenvolver. “Para além disso, têm a responsabilidade de coordenar e dialogar com todo um conjunto de profissionais que integram a prática de um projeto (estruturas, águas e esgotos, eletricidade, ventilação e ar condicionado, térmica e acústica, conforto térmico, paisagismo), fica responsável pelo seu desempenho e obrigado a seguros de projeto, a receber muitas vezes  apenas após o seu trabalho feito e aprovado, garantir a operacionalidade de uma equipa mínima de profissionais de arquitetura durante longos meses ou mesmo anos, com toda a responsabilidade inerente a uma atividade claramente empresarial (com as obrigações inerentes do tipo fiscal, segurança social), atualizar software e hardware permanentemente face às exigências cada vez maiores da prática contemporânea (formação atualização para programas BIM ou outros), para falar apenas das questões mais simples e evidentes numa qualquer prática profissional”, acrescenta.

Como se baixa um valor num projeto de arquitetura?

Duarte Pinto Coelho é perentório na resposta: “ Não é possível, nem desejável! Pelo contrário, é necessário continuar a fazer um ajustamento dos valores praticados, não necessariamente pelo valor, mas pelo tempo de amadurecimento que um projeto necessita para poder nascer, crescer e atingir a sua idade madura, que é o ponto em que deve passar para execução e finalmente para obra”.

Miguel Saraiva, indica que o principal custo de um projeto é a mão-de-obra. “Assim, só se baixa o valor de um projeto reduzindo as equipas e/ou o seus tempos de afetação”.

Nesta profissão não existe tabela de honorários. Um tema que tem sido debatido ao longo dos anos. Miguel Saraiva explica que já existiram tabelas de honorários de projetos de obras públicas, as quais eram também utilizadas para os projetos privados. “A Portaria que estabelecia estas tabelas foi revogada já há alguns anos. Hoje, nacional e internacionalmente, os honorários dos projetos devem ser calculados tendo em conta as equipas necessárias e sua afetação aos trabalhos, para além dos custos indiretos e margem”. Também Duarte Pinto Coelho acrescenta que a tabela de preços que existe é a antiga tabela MOP (Ministério de Obras Públicas), que ainda hoje serve de referencial a muitos ateliers. “No entanto, hoje em dia é comum existir uma percentagem geral indexada ao valor da obra, que permite adaptar os honorários à realidade de cada atelier, consoante os seus custos fixos, tempos de produção e procura que desperta no mercado”.

Paulo Martins Barata, refere também essa tabela que continuou a servir de ‘bitola’ para o cálculo, mas os arquitetos foram sucessivamente introduzindo “descontos” sobre o valor de obra. “Hoje, há quem aceite 70% de desconto, que é um absurdo total, já para não falar dos ridículos valores mínimos admitidos em concursos do Estado, entidade à qual se acresce ser péssimo pagador. Em termos comparativos, não deixa de ser um paradoxo que em Portugal um mediador imobiliário receba 5% (às vezes chegando a 7%) e um arquiteto em média 2%…  No contexto Norte Europeu é exatamente o oposto”, esclarece.

Tiago do Vale sugere recuperar uma tabela de honorários, como acontece, por exemplo, na Alemanha, para que a prática da arquitetura não esteja condenada ao mínimo denominador comum.

Como se consegue competir nesta ‘guerra’ de preços?

“Penso que existem formas diversas, não sendo nenhuma fácil. A diferenciação pela autoria é a mais reconhecida; se alguém quer um projeto do Eduardo Souto de Moura, teoricamente estará disponível, dentro dos limites da razoabilidade, para pagar o que ele pedir. A especialização é outra; projetos como hospitais ou aeroportos são tradicionalmente bem pagos porque a componente técnica do projeto é muito exigente, as obras são tipicamente grandes e a concorrência é menor”, admite o arquiteto da Promontorio, Paulo Martins Barata.

Já a resposta do arquiteto João Paciência é simples: “Não se consegue! E a questão não se resume apenas aos preços de projeto, mas a toda uma profunda transformação que entretanto se foi instalando na prática profissional, seguindo uma cultura do Tipo Instagram, pelo culto da imagem vendida em 3D, pelo falta generalizada da discussão pela positiva do que e como deve ser um projeto de arquitetura”.

O arquiteto Nuno Malheiro é de opinião que só é possível mostrando qualidade e não cedendo à redução dos valores dos honorários. “Mas, não é fácil”.

“Isto não pode ser uma guerra, nem de preços, nem de prazos. A guerra só se vence se cada um de nós primar por uma prestação de alta qualidade, seja no projeto, seja nos serviços associados à atividade. É urgente levar quem encomenda a distinguir o trigo do joio…”, conclui Miguel Saraiva.

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