Na quarta-feira, António Guterres enfrentará mais uma votação indicativa no processo de escolha do novo Secretário-Geral das Nações Unidas. Desde que o ex-primeiro-ministro socialista formalizou a sua candidatura, não houve partido ou figura política que deixasse de demonstrar um surpreendente entusiasmo com a dita. O Governo, naturalmente, declarou-o “um candidato particularmente habilitado”. Paulo Portas, conhecido lobista e ex-governante, considerou-o um “candidato fortíssimo”. O seu colega de ofício, Durão Barroso, fez saber do seu “total apoio” a Guterres, em virtude da sua “experiência” e “prestígio”. Marcelo, sempre desejoso de aparecer, não perde uma oportunidade de dizer que o seu amigo é a “figura mais brilhante” da sua “geração” (convenhamos que a concorrência não dignifica particularmente a distinção) e “o melhor para liderar a ONU”. O PSD, pelo seu líder Passos Coelho, “congratulou-se” pelas vitórias do candidato nas votações que já tiveram lugar. E até BE e PCP, com maiores ou menores cautelas, consideram a decisão de apoiar Guterres “acertada” e a sua eleição “desejável”.

Este rol de elogios quase faz esquecer que, até há poucos anos, não havia, do mais anónimo português ao mais destacado comentador político, passando por todos os partidos, quem considerasse Guterres mais do que um aparelhista do PS mais conhecido por conspirações em sótãos do que pela sua competência ou visão política, que, por estar preocupado em agradar a tudo e todos, acabou por não ter autoridade sobre ninguém e levar o país ao “pântano” que disse querer evitar. O PCP e o BE, claro, achavam-no “de direita” e acusavam-no de “capitular” perante os “interesses” dos “grandes grupos económicos”. O PSD, pelo então líder Durão Barroso, considerava que Guterres não tinha “sentido de Estado” e pensava “apenas na sua imagem”. E Marcelo, já no seu poleiro da TVI, bradava que o seu amigo “se estava nas tintas para o país” e que era “incapaz de deixar traço nenhum de nada” de “importante” para os portugueses.

Dir-se-á que foi o seu trabalho como Alto-Comissário para os Refugiados que o redimiu aos olhos dos seus compatriotas. Resta que o Wall Street Journal, que ao contrário da imprensa portuguesa não limitou a sua avaliação de Guterres às “presenças” ao lado de Angelina Jolie algures em África e às ocasionais declarações de boas intenções, considerou que ele se destacou por ser pouco capaz como administrador e por não fornecer os dados devidos da sua gestão financeira da instituição, críticas que farão soar as campainhas de quem se lembre do que se passou em Portugal entre 1995 e 2002.

Não sei se o Wall Street Journal tem razão nesta sua avaliação. Mas quem hoje exalta Guterres depois de tanto o criticar também não. Na realidade, a onda de apoio ao homem é apenas mais um exemplo de como os portugueses (e os políticos em particular) suspendem o pouco espírito crítico que eventualmente tenham sempre que “o país” está pretensamente (e apenas pretensamente) em causa: quando um português é distinguido “lá fora”, quando “a nossa” selecção joga, quando um político é nomeado para um cargo internacional, ninguém questiona se o premiado o deveria ser, se a selecção merece o “nosso” apoio, ou se o político está à altura do cargo para que foi nomeado. É um triste hábito, que evidencia, não o patriotismo que pretende alardear, mas o provincianismo a que não conseguimos escapar.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.