Completaram-se na passada semana 30 anos sobre a queda do Muro de Berlim, a igno­miniosa barreira artificial com que as autoridades da extinta República Democrática Alemã pretenderam aprisionar, em metade da cidade de Berlim, os seus concidadãos, impedindo-os de buscarem a liberdade, o respeito pelos direitos humanos, os benefícios da democracia e as vantagens da economia social de mercado de que poderiam desfrutar na vizinha República Federal da Alemanha.

A história da queda e do derrube do Muro da Vergonha já está praticamente feita. No momento, porém, em que novas gerações que felizmente não tiveram possibilidade de conviver com o símbolo da divisão na Alemanha, na Europa e no mundo, chegam à idade adulta, nós, os que tivemos a dita de assistir a esse verdadeiro momento histórico em direto – embora numa época ainda pré-redes sociais – não podemos nem devemos calar o nosso testemunho porque o mesmo não se baseia apenas no que nos contaram ou no que lemos.

Não é indireto, antes vivido na primeira pessoa, em muitos casos feito de experi­ências pessoais, o que torna tais depoimentos e testemunhos em algo de verdadeiramente insubstituível.

A queda do Muro não foi, apenas, o prenúncio e o passo prévio da reunificação alemã. Foi, também, o catalisador e impulsionador da implosão da ex-URSS, o fundamento moral da destruição das antigas democracias populares na Europa central e de leste, o detonador do desaparecimento da Checoslováquia e da Jugoslávia. Foi o ponto final na ordem internacional saída da Segunda Guerra Mundial e da conferência de Yalta que foi a ordem dos blocos, do mundo bipolar e da guerra-fria.

Mais importante, ainda – foi a demonstração in­contornável de que o comunismo falhou, que era destruível pela força popular e não ape­nas pela força das armas. Numa palavra, que não era o “papão” que muitos apregoa­vam e outros mais temiam.

Não foi, portanto, um momento circunscrito às duas Alemanhas. Teve uma repercussão e consequências verdadeiramente planetárias e o condão de colocar um ponto final, do ponto de vista político, no século XX. Ao mesmo tempo, abriu de par em par as portas para o novo século XXI que, também do estrito ponto de vista político, começou naquele já longínquo ano de 1989.

Trinta anos volvidos sobre essa data mítica e histórica, se é verdade que as suas causas já estão suficientemente escalpelizadas e conhecidas, as suas consequências, pelo contrário, ainda não podem ser dadas por integralmente apreendidas. O mundo organizado do pós-Segunda Guerra Mundial terminava e dava lugar a um novo mundo – desordenado, caótico, convulso, falho de regras e de princípios, instável e radicalmente diferente daquele a que sucedera.

Ora, muitas destas características continuam a fazer-se sentir nos nossos dias. A nova ordem internacional emergente ainda não pode dar-se por completamente estabilizada. Por vezes, ainda hoje continua a assemelhar-se à ordem do caos. Muitos dos sucessos que hoje contemplamos com apreensão e que têm por palco, sobretudo, o velho ocidente dos Estados soberanos, são inquestionavelmente fruto dessa ordem desordenada e muitas vezes caótica.

A emergência dos poderes fáticos que ninguém legitimou, o ressurgimento dos nacionalismos, o recrudescimento das ameaças terroristas, a relativização do princípio democrático e a exponenciação da teologia do mercado filha do liberalismo desumano – são apenas alguns dos exemplos que poderemos mencionar. O seu advento e o seu progresso foram potenciados pelo novo mundo que a queda do Muro permitiu que emergisse.

Esta avaliação necessariamente sumária merece uma precisão. Os elementos referidos constituem o passivo do mundo novo pós-1989. Mas que não restem dúvidas – o seu ativo continua a ser, inequivocamente, imensamente superior e muito mais valioso. Ou seja – com todos os defeitos que trouxe por acréscimo ou que potenciou ou que permitiu que se desenvolvessem, a queda do Muro de Berlim deu-nos um mundo muito melhor do que aquele que existia enquanto o Muro esteve de pé. Que disso ninguém tenha dúvidas: não passámos a viver num oásis; mas a Europa e o Mundo ficaram muito melhor!

Mas nesta data redonda e histórica que não quisemos deixar de assinalar, seria omissão séria e grave não recordar os principais obreiros desse feito verdadeiramente histórico.

Contra a voz e opinião de muitos (Margaret Thatcher e François Mitterrand, por exemplo, de quem se conta ter-se oposto à reunificação alemã com o argumento de que gostava tanto da Alemanha que preferia que existissem duas em vez de existir uma única e reunificada…), Helmut Khol, Mikail Gorbachov e o bem-amado e Santo Papa João Paulo II, sempre com o apoio – às vezes envergonhado mas sempre presente nos momentos decisivos – do aliado americano George Bush (pai), em modos e formas diferentes, foram os grandes artífices e obreiros deste marco histórico.

Deste marco que, todos os que o presenciámos, jamais poderemos esquecer ou olvidar. E a que, ao tempo e à época, poucos de nós alguma vez pensámos poder assistir.