O mundo dos criptoactivos activo está a ficar cada vez mais interessante. Fala-se menos de tecnologia e mais de exemplos da sua aplicação, como é o caso dos Non Fungible Tokens (NFT). Os NFT têm sido difundidos à conta dos activos virtuais, mas serão aplicáveis aos activos reais?
O conceito de criptoactivos tem origem na representação de valor no mundo da auto-execução, incluindo os seus direitos associados. Vamos com certeza continuar a assistir a exemplos surpreendentes deste novo mundo em função da inovação tecnológica e das propostas de valor, em conjunto com a evolução da própria legislação. Nesta linha, os NFT ganharam uma importância significativa a partir do momento em que começaram a ter impacto directo em actividades económicas, e é esse o ponto de partida para esta reflexão. Afinal, os criptoactivos são muito mais do que reserva de valor, pois, em última análise, o que interessa é o incremento económico proporcionado desses investimentos.
Aliás, quando a valorização dos activos é sustentada permanentemente apenas com base em expectativas, a bolha acaba sempre por rebentar. Ora, os NFT vão muito para além das expectativas quanto à reserva de valor, pois servem de suporte a transacções com criação de valor económico. É isso que interessa discutir.
Já aqui falámos anteriormente dos vários tipos de tokens, nomeadamente dos Utility Tokens, dos Security Tokens, e também de uma forma particular dos primeiros: os Tokens Não Fungíveis, ou NFT (Non Fungible Tokens). É que os Utility Tokens tanto podem ser fungíveis, que é o caso das famosas criptomoedas, como não fungíveis. Para ilustrar estes conceitos, vamos imaginar um cripto-jogo de Monopólio.
Num cripto-Monopólio, representaríamos o dinheiro, as casinhas (verdes) e os hotéis (vermelhos) com Tokens fungíveis, por serem todos semelhantes entre si. Já os títulos de propriedade serão representados com NFT, pois cada terreno imaginário é diferente.
Mas atenção, enquanto no Monopólio tradicional os terrenos são representados por pequenos cartões, cujo direito de propriedade passa pela sua posse física, os NFT são desmaterializados. Então, como garantir o direito de propriedade durante o jogo quando a sua representação não é física?
Para gerirmos o direito de propriedade dos terrenos imaginários do Monopólio, temos de considerar três partes: (1) o terreno imaginário propriamente dito, (2) a sua representação codificada, para que possa ser manipulada no domínio intelectual, e (3) a execução do direito de propriedade no contexto do mesmo jogo. Interessa assim perceber bem a diferença entre a representação do direito (ponto 2) e a execução do mesmo (ponto 3), pois um NFT representa-o indubitavelmente, mas será que o pode assegurar?
No caso do Monopólio tradicional, cada cartão apenas descreve o direito (ponto 2), e é a sua posse física (ponto 3), dentro das regras do jogo, que o atribui a cada jogador em particular. Já no caso do cripto-Monopólio, desmaterializamos os cartões (com imagens por exemplo), e criamos um NFT para cada cartão com a sua assinatura criptográfica (ponto 2).
Como as regras do cripto-Monopólio são auto-executáveis para todos participantes (ponto 3), o detentor da chave privada do NFT correspondente a cada terreno vai poder usufruir automaticamente dos direitos associados. Não podemos, portanto, dissociar os NFT da execução das regras do jogo. Desta forma, o NFT não tem de ser o activo (ponto 1), e nem sequer a descrição inteligível dos direitos associados ao mesmo activo (ponto 2), pois bastará a assinatura criptográfica do seu conteúdo desmaterializado para garantir o direito de propriedade do activo que representa (ponto 3), desde que essa assinatura seja aceite pelo ecossistema onde é usado.
Um exemplo recente, e extremamente disruptivo, foi a venda por 69 milhões de dólares de um NFT correspondente a uma imagem do artista de nome Beeple. Em vez de estar impressa em papel, a imagem em causa é um jpeg com uma dimensão de 319,3MB.
Quando a Christie’s leiloou esse NFT, será que esse leilão incluía a imagem? Na verdade, qualquer pessoa a pode copiar, e se qualquer pessoa pode possuir a cópia da imagem original, o que adquiriu realmente o comprador do seu NFT por aquele valor absurdo? Pois bem, o NFT da imagem do Beeple apenas contém a assinatura digital dessa imagem, uma vez que esta última permanece no domínio público, armazenada algures fora da blockchain.
Na verdade, o comprador adquiriu um token que representa um direito que só ele pode executar na blockchain, neste caso atestando que é possuidor da assinatura original. Mas quem garante que qualquer um de nós não pode criar um NFT dessa mesma imagem e vendê-lo?
Banksy já foi vítima deste tipo de fraude. No caso do Beeple, a resposta está na Christie’s! Neste caso, a execução do direito associado à transacção não passou por nenhuma escritura, nem nenhum leilão descentralizado ou distribuído. Foi o próprio Beeple que criou o dito NFT e foi a Christie’s que comprovou a autenticidade dessa assinatura. Afinal foi isso que a Christie’s leiloou! Não se transaccionou apenas o NFT mas também a garantia da proveniência da assinatura original.
Este é um exemplo que mostra bem a importância das regras do ecossistema em que se insere, e é um exemplo que revela quão longe estamos da utilização do NFT na economia tradicional.
NFT e IPFS, um casamento perfeito
Os activos digitais são os candidatos naturais à tokenização, pois é extremamente fácil criar a sua assinatura criptográfica e adicioná-la ao ecossistema que quisermos. Já a tokenização de um activo real é muito mais difícil, mas lá chegaremos.
O que aconteceu no caso da referida imagem do artista Beeple, e que também acontece na grande maioria dos NFT, é que o activo virtual não fica armazenado na blockchain. Neste caso, o NFT só armazenou a assinatura digital, a tal que representa o activo virtual associado (o jpeg, neste caso).
A questão é onde vai ser armazenado um jpeg de tão grande dimensão. Hoje em dia é normal usar-se a Web e incluir um link no NFT, o que levanta o problema da sua perenidade, pois quem pode garantir que o servidor desse link se manterá activo? Guardar na blockchain pode ser uma solução, e até poderemos usar o espaço disponível do próprio NFT se a dimensão dessa informação for diminuta (como é o caso dos Criptopunks). Porém, nem tudo tem de ficar na blockchain, pois só precisamos das suas propriedades de auto-execução (neste caso dizemos que os conteúdos estão “off chain”).
O Interplanetary File System (IPFS) parece ser uma solução natural. É parecido com o mundo dos Torrents, muito utilizados na pirataria de conteúdos, onde cada participante guarda uma cópia de parte da informação partilhada entre todos. Como há muitas cópias dos mesmos dados, o sistema torna-se extremamente resiliente. Além disso, o endereçamento dos ficheiros armazenados no IPFS é diferente do habitual: em vez de o endereço ser um nome (como um link) e naturalmente manipulável pelos humanos, esse endereço é constituído, imagine-se, pela assinatura digital do conteúdo!
Tal não podia ser mais conveniente para a sua utilização no mundo da blockchain, pois assim as assinaturas dos activos digitais armazenadas nos NFT passam a poder endereçar directamente esses conteúdos no IPFS sem precisar de nenhum link.
Além do mais, a utilização do IPFS tem propriedades de resiliência distribuída muito parecidas com as da blockchain. Não obstante, os dados no IPFS são públicos, pelo que, se quisermos manter a confidencialidade do seu conteúdo, estes terão de ser criptografados.
A loucura dos Fan Tokens
Um caso particularmente extraordinário da utilização de NFT é a crescente efervescência dos Fan Tokens, sendo também um exemplo de impacto directo e positivo nas atividades económicas.
Um dos mais interessantes vem de Espanha, e chama-se socios.com.
À primeira vista, faz lembrar o tempo em que se coleccionavam cromos dos jogadores, havendo até situações em que, em determinadas geografias, alguns cromos atingiam valorizações incalculáveis dado o valor intangível criado pela sua escassez, uma vez que não podiam ser copiados. Ora, os NFT também não podem ser copiados. Aliás, tal como uma fotocópia do cromo não é o cromo, a cópia do conteúdo de um NFT também não é o NFT!
Porém, um Fan Token é muito mais que uma espécie de cromo, pois representa os direitos associados no ecossistema que lhe dá vida. No socios.com, estamos a falar de descontos, de caças ao tesouro, de serviços VIP, e até da possibilidade de serem votadas as decisões dos clubes de futebol em causa, alguns dos maiores do mundo. De notar que também os há no automobilismo, luta, basquete, ténis, e, obviamente, nos jogos virtuais. É mesmo um novo mundo onde a utilização dos NFT se transforma numa mistura de rede social, produto/serviço e respectivos direitos, dando origem à criação do valor económico proporcionado por cada ecossistema. É isto, aliás, que pode justificar a sua valorização.
Os NFT passaram a ser uma questão de direito e de regulação
Tal como vimos acima, os NFT são um conceito simples, que se define como uma assinatura única da informação que representam, e é isso que os torna tão valiosos (desde que haja apetência por essa exclusividade). Mas levanta-se a sempre presente questão do direito.
Cada assinatura só vale o que o ecossistema permitir. Assim, quando o direito for exercido num contexto de auto-execução, estaremos no mundo das DAO – Distributed Autonomous Organizations, o que está hoje muito longe do mundo real. Os direitos dos Fan Tokens no socios.com, por exemplo, são exercidos por cada organização que proporciona os direitos acordados. Neste caso, a garantia dos direitos está fora da blockchain, mas se essa mesma garantia estivesse programada em Smart Contracts, como por exemplo num jogo virtual, já estaria sujeita à auto-execução.
Apesar de ainda estarmos longe de ver pessoas jurídicas, activos reais, e os seus direitos associados, na esfera da blockchain, será que os NFT podem ajudar? Para o tornar possível, o primeiro passo será o da identificação jurídica, já aqui referida, aliás. Seria muito mais interessante poder adquirir o NFT da imagem de Beeple sem necessidade de ter uma Christie’s como intermediária a provar a origem da sua assinatura criptográfica, mas para isso será necessário que o NFT esteja indubitavelmente ligado a uma pessoa jurídica no momento da transacção.
Ora, no mundo de hoje, as pessoas jurídicas, bem como os seus direitos associados, estão essencialmente fora dos ecossistemas auto-executáveis. Assim, também nos NFT, o papel da lei e da regulação serão fundamentais quando está em causa a tokenização de activos e as características pseudo-anónimas da identificação armazenada nas wallets. Há soluções, e talvez venham a ver a luz do dia nestas páginas. Só faltará mesmo discutir, implementar, e ractificar alguma dessas soluções perante a lei. Talvez esteja a faltar uma estratégia…
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.