“Boa tarde a todos. Bem vindos ao inferno” – Hell’s Kitchen

(Não tenho por hábito comentar programas de televisão. Faço, desta feita, porque neste caso o mesmo é absolutamente contrário a quase todos os valores em que acredito, a começar pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Claro que não é caso isolado. A televisão está cheia disto mas a culpa é de todos nós.)

Enquanto um canal rival colocou em prime time uma senhora conhecida principalmente pelo volume de voz, a SIC estreou a semana passada um alegado programa em que outro cidadão, igualmente conhecido pelo volume de voz a que se associa uma capacidade única de dizer inúmeros palavrões, alegadamente ensina outros a gerir restaurantes (enquanto também reproduzem os mesmos palavrões).

Devo ter sido das poucas mortais que não assistiu em directo a qualquer um deles, mas um amigo chamou-me a atenção para o que se passou no segundo caso e dei por mim a assistir incrédula a mais um êxito televisivo.

Para além da promoção inusitada à figura do Chef, desviando-se a atenção dos pratos para o homem que os deveria cozinhar, o episódio em causa pautou-se pela instigação de um espírito constante de competição entre os concorrentes, solicitando-se, por exemplo, a cada um que, sem conhecer o vizinho do lado, expressasse a sua primeira impressão.

Contudo, mais do que o desvalor de assistir a pessoas que, revelando pouca ou nenhuma empatia com as demais, afirmam com orgulho estar ali para “derrotar adversários”, o que me chocou foi a criação de um ambiente que, seguramente, se pautou por ofensas, humilhações gratuitas e o lema de que vale tudo para se obter um bom resultado.

Não discuto a competência técnica do dito Chef, reconhecida com a atribuição de uma estrela Michelin, desde logo porque nunca tive a menor curiosidade em enriquecer quem trata as pessoas como ele o faz. Mesmo descontando os exageros da produção, para mim é inadmissível que um qualquer profissional, ainda que visando que os candidatos consigam dar o melhor de si, se permita ter comportamentos como os que ali foram registados.

Ao mesmo tempo, fazer-se um alegado programa de televisão sobre comida e esta ser um aspecto completamente secundário, antes se privilegiando antigos hábitos de toxicodependência ou anteriores presenças em capas da revista “Playboy” é algo que me escapa em absoluto.

Gostar de espectáculos deprimentes é um direito de cada um e quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Aceitar humilhações públicas, como “queres levar com isto na cara?” ou “isto é uma m…”, sem se perceber que os fins não justificam os meios é caucionar que vale tudo em nome das apregoadas audiências.

Quando tudo se nivela por baixo, às vezes, a única revolta possível é desligar a televisão e abrir um livro. Será o meu caso nas noites de Domingo.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.