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Henry Kissinger: morreu o autor da política externa dos EUA

Era Nixon que ocupava o palco mas era Kissinger o encenador. E continuou a ser durante décadas, tendo-se cruzado com Portugal. A fúria não-diplomática, guardou-a para a martirizada América do Sul.
Henry Kissinger
30 Novembro 2023, 09h53

Foi o mais importante diplomata norte-americano da segunda metade do século XX – engendrou todo o pensamento estratégico dos Estados Unidos no auge da Guerra Fria, a eminência parda que se movia nos bastidores enquanto os políticos eleitos tratavam das encenações nos palcos oficiais. Henry Kissinger, que desapareceu esta quarta-feira aos 100 anos de idade, viciado em ‘real politik’, chegou a ser ‘a’ voz da política externa dos Estados Unidos e nunca mais deixou uma voz audível, mesmo quando deixou de ter funções públicas.

O seu pensamento estava ancorado num profundo conhecimento da história e das motivações do ‘inimigo’ – ou mesmo do inimigo sem aspas: era como inimigos que tratava os que se opunham aos ‘seus’ Estados Unidos, urdindo teias, maquinando efeitos especiais e mostrando um sorriso mais ou menos eterno que oscilava entre o cinismo e a boa disposição de um avozinho.

Já depois de retirado das andanças públicas, deixou de se mostrar disponível para permanecer nos bastidores: as suas intervenções não passavam despercebidas e, uma vez desamarradas dos corredores estreitos das funções oficiais, galgaram as margens e tornaram-se matéria de ponderação. Deixou de ter de se preocupar com a correção da política oficial e demonstrou isso mesmo quando, há uns meses, chamou a atenção para que o apoio à Ucrânia estava muito bem, porque não?, mas explicou que o Ocidente não tem como deixar de conversar com a Rússia. Gerou polémica quanto baste, como voltou a gerar quando deu a entender que esse mesmo Ocidente não podia deixar de dialogar com a China. A mensagem era clara: quando se quer falar com alguém, não costuma recorrer-se ao contributo da criadagem – o melhor é falar com os patrões.

Um dos golpes mais célebres da sua carreira foi quando conseguiu convencer Richard Nixon – um presidente que não pode ser acusado de ter um pensamento político estruturado, apesar da lavagem histórica de que foi alvo anos depois – de quem era secretário de Estado, que promover a China e com isso acordar o ódio da União Soviética era o caminho certo. E foi, apesar de os Estados Unidos terem na altura arranjado um problema que só mais tarde teria consequências: Taiwan. Ou talvez não: talvez, ao desprezar os herdeiros de Chiang Kai-shek, Kissinger soubesse que guardava na algibeira o segredo da reversão da amizade com os chineses.

Profundamente anti-comunista, Kissinger haveria de cruzar-se com Portugal depois de 1974, por via de um embaixador, Frank Carlucci – um personagem menor (pelo menos se comparado com Kissinger, de quem era uma espécie de ‘is master voice’ na ponta mais ocidental da Europa). Dizem as crónicas que chegou a preocupar-se com a eventualidade de Portugal resvalar para os braços do comunismo, mas não muito. Kissinger sabia ler muito adiante e terá percebido rapidamente que a União Soviética não tinha um interesse especial em criar comunismos na Península Ibérica – para isso contribuía a história da guerra civil espanhola, o despertar do Terceiro Mundo, a guerra no Vietname e a densificação em curso da Comunidade Económica Europeia.: se não fosse Álvaro Cunhal, Leonid Brezhnev com certeza nem sequer saberia apontar Portugal no mapa-mundi. Os que acreditam que Portugal esteve quase a ser a Cuba da Europa esqueceram-se de ler alguns capítulos da história do velho continente – ou então eram militares (de Abril) que nem sequer chegaram a abrir os compêndios da disciplina.

De resto, desprezava os ditadorzecos de pacotilha, conjunto para onde, tudo o indica, atirara António Salazar (e Francisco Franco), um salazarento que por certo recordaria a Kissinger o facto de a sua família se ter retirado à pressa da Alemanha (em 1938) quando se tornou evidente que a morte era a próxima paragem para os judeus.

Foi galardoado com o prémio Nobel da Paz em 1973 (por causa do Vietname) e ninguém lho tirou (ou ninguém lho atirou à cabeça) quando espalhou pela América do Sul todas as bondades em que os Estados Unidos eram pródigos quando o assunto era o seu jardim das traseiras. Ali (tal como em África), a política era a doer e não havia tempo nem disposição intelectual para contemplações. A América do Sul estava demasiado próxima e por isso Kissinger patrocinou a instalação em tudo quanto era sítio de personalidades obscuras que não tivessem medo de ver sangue mesmo que fosse em abundância. Para a história ficará a responsabilidade de Kissinger na morte de Salvador Allende, que substituiu por um desses ditadorzecos de pacotilha que tinham a virtude de pensarem pouco, contentarem-se com pouco e desaparecerem em pouco tempo.

Escritor de livros que não podem deixar de estar à cabeceira dos diplomatas e nas mãos dos que querem saber de que balbúrdias é feito o mundo, Henry Kissinger passou esta quarta-feira diretamente para a história.

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