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Perdidas as eleições, o ainda Presidente Joe Biden procura, nestes meses que faltam até à tomada de posse do seu sucessor, acelerar a história à custa de vidas humanas e da segurança internacional. Tanto na Ucrânia como na Palestina.
Autorizou que Zelensky faça uso de mísseis de longo alcance, mísseis “made in USA” (ATACMS), arsenal da NATO a fazer mira sobre mais território da Rússia. E com isso desregionaliza a guerra, compele uma escalada que excede a escala da Ucrânia, que bem pode levar Putin a considerar que a resposta proporcional deve ir além das fronteiras da Ucrânia, e a concluir que o inimigo é cada vez mais outro, cada vez mais nós próprios.
Além dessa escalada territorial, chamar os mísseis de longo alcance para o conflito é abrir a porta ao arsenal onde a Rússia tem mais argumentos. Se Zelensky conseguir por esses meios um dano vasto sobre o território russo, se com isso conseguir fazer a Rússia sentir-se em risco existencial, não nos resta muito além de esperar uma resposta tremenda de Putin. A administração norte-americana sabe disto tudo. Mas está de saída e, por isso, permite-se forçar uma situação sem saída. Na Suécia, o Governo vai fazendo chegar às caixas de correio dos cidadãos um guia para lidar com situações de crise e guerra. Por cá, para preocupação da marinha, o tráfego de navios militares da Federação Russa tem aumentado.
Quanto à Palestina, o ultimato que fora feito a Israel no mês de Outubro caiu no esquecimento. Não admira. Na sua génese, já era hipócrita – como compreender que se tivesse dado um mês inteiro para que fosse parado um genocídio que todos os dias do mês matou dezenas de crianças em Gaza? O mês já lá vai e as crianças continuam a ser mortas, apesar de todas as denúncias, todas as notícias a gritar o escândalo.
O ultimato foi uma manobra para a administração norte-americana ganhar tempo, tempo para que as forças de Israel prosseguissem. Neste tempo de genocídio, dos que morrem a tiro, a bomba e dos que morrem de doença, sem água, sem hospital, sem cuidados, era apenas preciso parecer que o respeito pelos direitos humanos importava. A política de Biden face ao genocídio em curso em Gaza não é menos cínica e desonrosa do que ao lermos as notícias da manhã, mais uma centena de pessoas mortas, termos, ao mesmo tempo, de ouvir a explicação das forças de Israel: foram feitos todos os esforços para “evitar mortes de civis”.
O rosto do que sai da presidência dos EUA revela-se melhor à saída. É sinistro. E com franqueza, não há prudência nem realismo que justifiquem Kamala Harris ainda ser sua Vice.
2.
O rosto que agora regressa, que talvez não tivesse condições para regressar se Biden tivesse sido outra coisa, é o da promessa da distopia. Trump aponta para futuro secretário para a Energia Christopher Wright, um negacionista das alterações climáticas, empenhado na continuação de consumo de combustíveis fósseis, de que é aliás parte interessada. Trump aponta para futuro secretário para a Saúde Robert Francis Kennedy Jr, um activista anti-vacinas e está tudo dito. Trump aponta para Procurador-geral Matt Gaetz, político com quase irrelevante experiência para o cargo e a quem foram feitas alegações ligadas a tráfico sexual. Trump aponta para secretário da defesa, Pete Hegseth, um apresentador e comentador da Fox News, também envolvido em alegações sexuais, e que chamou de patriotas aos invasores do Capitólio. É esta a gente que vai conduzir o destino da nação mais poderosa do planeta, sob o comando de Donald Trump, ele próprio o primeiro ex-presidente dos EUA condenado, e ainda assim de novo eleito, numa vitória expressiva.
E, finalmente, temos Elon Musk, o homem mais rico do mundo (com uma fortuna que excede os 250 mil milhões de dólares), dono do antigo Twitter, nomeado por Trump para uma nova agência de eficiência governamental (com o propósito de reduzir estruturas e custos) à margem da estrutura orgânica federal e, por isso, nem sequer passível de validação pelo Senado.
A nomeação de Musk é a vitória da hiperplutocracia global. Ele é o representante cimeiro do ponto percentual de população do mundo que detém a mesma riqueza que só uma esmagadora maioria de 95% da população do mundo consegue alcançar (seguindo dados da Oxfam, publicados em finais de Setembro). Ele é ainda o representante da substituição do espaço público por um circo privado de manipulação, de espaço e regras definidas sem decisão democrática. E, não menos, é também o representante do desmantelamento do compromisso político com um estado social.
Definindo-se a si próprio como um “anarquista utópico”, na verdade o que está presente de forma bem real na sua acção – e na presente nomeação – é um programa político que visa eliminar todas as estruturas de estado ao serviço dos cidadãos e a que habitualmente chamamos “estado social” (Welfare state, no contexto anglófono), conservando apenas o Estado que legisla e faz cumprir a lei e que garante o monopólio do uso legítimo da violência.
Não por acaso, o presidente da Argentina, Javier Milei, que assumiu para o seu país o programa político anarcocapitalista foi o primeiro congénere a ser recebido por Trump e logo acarinhado como o “presidente preferido”.
Esse programa visa a eliminação do estado emancipador que se foi mobilizando sobretudo desde o pós-Segunda Guerra Mundial na forma de estado social, social-democracia em diferentes versões de compromisso com a igualdade, nem que seja de oportunidades. Em nada visa combater – como o fizeram anarquistas e libertários –, pelo contrário, a figura antiga do estado que legitima o poder de uns sobre os outros e que faz do estado estrutura de dominação de classe. O único estado que a hiperplutocracia, o governo do 1% mais ricos, dispensa é o estado social.
3.
A vitória eleitoral da hiperplutocracia nos EUA choca. É nela que Trump, Musk se mostram do mesmo lado que Putin e os seus, apesar de todas as diferenças que os separam. Em nome de segurança, uma vida melhor, até de uma narrativa de sentido, o voto democrático parece cada vez mais disposto a alienar valores de protecção social, o edificado de políticas que compõem um estado social, ou mesmo liberdades civis, igualdade diante da justiça, igualdade de direitos, no fim do caminho, a própria democracia.
As democracias estão em declínio há largas décadas, a par do aumento das desigualdades, mas a relativização do valor da democracia, ou melhor, dos valores associados à democracia parece ter acelerado já neste século, depois da migração em boa medida do espaço público para os espaços privados que são as redes sociais. E pode começar-se pelo que é mais evidente. O papel capacitador de intervenção e mobilização que as redes sociais inegavelmente têm devia ter dado origem há muito a redes sociais genuinamente públicas, desenhadas e activadas por iniciativa pública, sob controlo democrático.
Que sentido faz não questionarmos o facto de as redes sociais onde discutimos publicamente serem produtos de mercado de empresas privadas orientadas para o lucro e detidas por bilionários com ambição de poder, hiperplutocratas? Urge rearticular democraticamente o espaço público. Mas tão pouco ou nada se fez nesse sentido.
Por outro lado, a luta pelo espaço público tem de ser também a rearticulação da proximidade. Como a rua e a praça onde todos comparecemos de igual para igual e temos de nos suportar o olhar e as razões. De outro modo, em vez da construção da solidariedade, resta a zanga social, até a identificação do privilégio cada vez mais apenas um moralismo que raramente faz o exercício de se imaginar do lado privilegiado.
Por fim, quando a verdade é engolida pelo que se quer dela, apenas a sua representação sem exterior dela, tornada irrelevante a diferença entre o verdadeiro e o falso, nada a justificando senão o seu efeito persuasivo, em vez de uma ideia de verdade convidar maior adesão, pelo contrário ser o número de aderentes a determinar o que é verdade, quando até o vínculo da justiça com a verdade é desprezado, o lugar em que estamos perde relação com a distância e torna-se uma distopia fechada sobre si mesma.
Se articulássemos outras redes, também virtuais, a partir da proximidade, de um compromisso com a congruência discursiva, o respeito pelo que nos dista, e uma construção democrática dos lugares, das práticas e das vontades políticas, outro tecido ia ficando aí. A resistir à hiperplutocracia global. Era um começo.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.