Carlos César, presidente do PS, diz que chegou a hora de “meter a mão na consciência” porque “em Portugal parece que não se passou nada” e eu, surpreendido, preparo-me para ler, no “Observador”, um texto sobre o que mais terá acrescentado durante uma homilia que mantém na TSF e na qual contracena com outras vetustas figuras da situação.

São segundos de uma inexplicável surpresa.

Finalmente, alguém, com lugar no alto do regime, ter-se-á escandalizado com o que se passa na sociedade portuguesa, do compadrio familiar que distribui empregos no Estado até aos sucessivos e intermináveis casos de corrupção que abalam a fé dos cidadãos na Democracia.

Puro engano, que o texto, curto, não prolonga por mais de alguns segundos.

Afinal, Carlos César não está a rasgar as vestes em arrependimento pela forma monárquica como o PS, a começar por ele quando reinava nos Açores, interpreta a República, distribuindo empregos a eito pelo mérito da consanguinidade.

Não! Nada disso. César está abalado pela maldade da perversão sexual que se manifesta na pedofilia. E eu estremeço ainda mais: porquê só agora, tantos anos e sofrimento depois, já com sentenças transitadas em julgado, uma declaração sobre o que se passou na Casa Pia? Não faz sentido!

E não fazia, de facto.

A pedofilia que incomoda César é aquela que passa tão longe dele quanto perto de todos nós; aquela que envergonha o Homem de eleição que é o corajoso Papa Francisco e não deixa imune a Igreja portuguesa; aquela que não pode deixar de horrorizar todas as pessoas de Bem e deveria determinar mudanças profundas na forma como a Igreja vê o celibato e determina a formação dos sacerdotes.

Eu teria ficado por aí, racionalizado o equívoco da leitura, não se dera o caso dela revelar que César teria, e cito de novo, colocado em causa a “legitimidade” dos bispos para “condenar as condutas do poder político e económico”, uma vez que muitos deles são responsáveis por “corrupção moral” e por “abusos”. Nesse ponto, o desplante do presidente do PS afigurou-se-me demais, até porque ele saudava o fim do tabu sobre o assunto no Vaticano – e eu, revertendo à política portuguesa, que é o meio de onde a figura de tempos a tempos nos aparece, não levaria a mal, antes pelo contrário, fenómeno semelhante que saísse do Largo do Rato e tivesse o mérito de reconhecer outros “silêncios difíceis de manter”, como a corrupção, outro “historial de vergonha, escândalos e abusos continuados”.

Lembro-me perfeitamente do silêncio do PS e dos outros partidos do regime quando a ex-Procuradora Joana Marques Vidal denunciou, numa entrevista à Rádio Renascença, em 2015, as áreas da “Saúde e da contratação pública” como os terrenos mais férteis para a corrupção instalada à volta do Estado. Acrescento eu: ou da realidade da Banca; ou de tudo aquilo que se sabe e por piedade não relembro.

Ver Carlos César a dizer banalidades sobre abusos sexuais a menores, como simples comentador, quando lhe caberia dizer coisas importantes sobre a sociedade que ele ajuda a formatar, enquanto político, dá-me náuseas.

A Igreja Católica tem muitos pecados históricos na consciência mas tem agora o Papa Francisco para os estigmatizar, até contra a resistência do seu espaço global minado. Há ali esperança e muita coragem. Ao contrário, a política portuguesa, microclima fétido,  parece que só tem disto: hipocrisia pública, cobardia que finge apenas reparar numa parte das notícias. Mas sem surpresa: a César o que é de César.