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História: A polémica sobre um museu que ainda não saiu do papel

“Descobertas”, “Expansão” ou “Viagem”? O nome do museu prometido por Medina está a agitar os ânimos entre os historiadores, ainda antes de ter sido construído. Em causa estão diferentes leituras da História: a visão de um passado plural ou a exaltação dos heróis nacionais.
19 Maio 2018, 13h25

A construção de um Museu dos Descobrimentos foi uma das promessas feitas por Fernando Medina durante a corrida à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. A ideia ganhou força com a vitória do candidato socialista e, apesar de ainda não ter saído do papel, a construção do museu já está a gerar polémica entre historiadores e cientistas sociais. Uma parte da academia fala em “incorreção histórica”, por estar a ser feita uma apologia da “perceção da realidade do ponto de vista dos povos europeus”, da qual se exclui a visão de outros povos envolvidos. O debate está instalado e a questão é: deve Portugal continuar a mitificar os seus heróis ou deve expor criticamente a sua História sob uma perspetiva inclusiva e plural?

Mais de cem pessoas subscreveram o abaixo-assinado contra a possibilidade de Lisboa vir a albergar um Museu dos Descobrimentos. As razões levantadas prendem-se, sobretudo, com o nome que o museu pode vir a receber. Os subscritores defendem que a palavra “Descobrimentos”, por ter sido uma expressão muito utilizada durante o Estado Novo para invocar um passado histórico grandioso, convoca “um conjunto de sentidos que não são compatíveis com o Portugal democrático”. Os académicos reconhecem que a designação já era utilizada anteriormente para descrever as conquistas marítimas dos portugueses e, mais tarde, dos europeus em zonas, até então, por eles desconhecidas. No entanto, a ideia é problemática para os não-europeus, indicam os signatários. “Ter-se-ão os povos africanos, asiáticos e americanos, de histórias milenares, sentido ‘descobertos’ pelos portugueses?”, questionam.

Ao Jornal Económico, Paulo Pinto, investigador do Centro de História Além-Mar (CHAM), explica que esta “não é uma dúvida ou uma polémica que tenham surgido agora”. “Há algum tempo que os nomes que tradicionalmente atribuímos às viagens de navegação, à chegada dos portugueses e europeus a outros continentes e ao contacto com outras culturas levantam uma série de dúvidas e questões que se têm acentuado nos últimos anos. Os conceitos estão sempre em discussão, vão sendo atualizados e vão aparecendo outros que nos parecem mais adequados. Isso faz parte de um processo natural. Ninguém tem de se chocar por aparecerem agora uns historiadores a colocar em causa esta designação”.

O politólogo Jaime Nogueira Pinto acredita que a explicação principal para a polémica tem a ver com “uma doença cultural que atravessa o ocidente”. “É uma doença que começou nas universidades americanas e que pretende, em nome de uma ideologia hegemonizante, policiar o pensamento e a linguagem, estabelecendo formas de censura prévia e póstuma de modo a instaurar um clima de autocensura, um clima inquisitório contra ideias e palavras que fujam à ortodoxia”, argumenta, acrescentando que o discurso assético, que passa por “humildade e tolerância, acaba por ser de uma grande arrogância de ‘centro do mundo’”.

“O termo ‘descobrimentos’ é usado frequentemente nas ciências e é claro que as realidades que se diz terem sido descobertas já existiam antes”, indica Luís Raposo, presidente do Conselho Internacional de Museus – ICOM Europa, que lembra o caso da descoberta da lei da gravidade e a descoberta do lobo da Tasmânia. Luís Raposo defende que a polémica consiste numa “oposição entre procura do conhecimento, que significa interiorização da dúvida e do respeito pelos outros, e a arrogância ideológica, que normalmente significa fixação em ‘verdades antigas’ e indisponibilidade para as poder pôr em causa”.

Considerando que a divisão na academia vai além das clivagens de esquerda-direita, Paulo Pinto defende que o que está em causa é uma questão de maior ou menor atualização. “As pessoas que são da área e que são investigadores tendem a estar mais atualizados e são os primeiros a reconhecer que isto é uma polémica que já foi feita noutros países e encaram-a mais naturalmente. Já aqueles que não são historiadores são, grosso modo, os primeiros a ficarem alarmados e aí é que são mais evidentes as clivagens entre esquerda e direita”, afirma o investigador do CHAM.

Nogueira Pinto discorda e diz que estamos perante “uma divisão entre pessoas descomplexadas, independentes, conscientes da própria identidade e subjetividade, e pessoas obcecadas pela enfermidade do ‘politicamente correto’, pela obsessão de falarem de lado nenhum, em nome de todas as sensibilidades e considerando todas as suscetibilidades”. “Quando se faz em Portugal, em Lisboa, um ‘Museu das Descobertas’, deve precisamente pensar-se no que para nós, portugueses, e no que para os europeus foi o encontro com esses novos mundos. Foi uma ‘descoberta’. Os outros farão os seus museus”, reitera.

Uma das questões levantadas pelos signatários da carta é de que ponto apresentar os factos que levaram os portugueses a encontrar terras e mares desconhecidos na Europa nos séculos XV e XVI, sob um ponto de vista apenas – o português – não seria uma forma de “reduzir a riqueza e a complexidade dos factos históricos”. Mas os críticos mais ligados à direita acreditam que a ideia de abrir a história a uma perspetiva mais crítica e aberta à interculturalidade pode vir a colocar alguns desafios no que toca à identificação com os seus hérois nacionais. Defendem que uma visão plural do passado pode levar à perda de referências históricas enquanto nação e conduzir à perda de identidade.

“O culto e mitificação dos heróis – nacionais ou universais – faz parte da cultura e da identidade das nações e da Humanidade. Todos os povos têm heróis, na conquista ou na resistência. É um fator de unidade, sobretudo quando os objetos de culto são figuras importantes para a identificação de um povo”, indica Nogueira Pinto. “Falar em ‘encontro de culturas’ é muito mais falacioso. E querer assumir a bissetriz, a síntese das duas visões é irrealista e prepotente”.

Paulo Pinto reconhece que o apreço especial que determinadas figuras merecem por parte da nação é algo que deve ser respeitado. “Mas há que distinguir entre aquilo que são construções românticas e idealizadas e que fazem parte do nosso ego nacional, daquilo que é a história”, defende. “É importante desconstruirmos estas personagens e vê-las no seu contexto. Não podemos colocar as figuras num pedestal porque nos querem destruir a glória do passado. O conhecimento da história é essencial para a solidez da identidade nacional”.

“Acredito que o termo ‘descobrimentos’ possa atualmente ser considerado por muitos como inadequado por possuir conotação colonial. Eu não a sinto, mas respeito quem sinta de outra forma e, por isso, aceito que talvez seja melhor encontrar terminologia mais pacificadora”, afirma o presidente do Conselho Internacional de Museus.

Como alternativa ao termo “Museu dos Descobrimentos”, a deputada socialista Matilde Sousa Franco, que já foi diretora de alguns dos principais museus e palácios em Portugal, avançou com a proposta de alterar e atribuir a designação para “Museu da Interculturalidade de origem portuguesa”. Mas a proposta apresenta algumas imprecisões. “Acaba por haver uma confusão no próprio título, porque se é interculturalidade não pode ser de origem portuguesa; tem de ser de vários sítios”, nota Paulo Pinto.

Nogueira Pinto pensa que o termo “Museu dos Descobrimentos” é adequado. “Os obcecados da correção política poderão chamar-lhe “Museu das Culpas e Desculpas”. “Museu do Lusitano Arrependimento”,  “Desculpe se o Descobri”. Paulo Pinto confessa que só não assinou o abaixo-assinado porque esse não passou pelas suas mãos. “Esta discussão deveria ter sido feita nos anos 80, quando o império acabou e as colónias passaram a ser ex-colónias. Há toda uma reavaliação do passado colonial, ultramarino e dos descobrimentos que nunca foi feito. Acho que é uma discussão muito saudável e que já deveria ter sido feita há algum tempo”.

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