(Por uma vez, o título destas linhas não surge inspirado numa obra de um reputado autor mas numa historieta que escrevinhei há vinte anos. Lidas tais páginas, o que sobra é uma sensação de Cassandra porque aos vinte adivinhei o estado caótico de uma sociedade em que cada membro se sente sozinho no meio de uma multidão que se acotovela. Não há pior solidão que a que se sente no meio de uma multidão. Principalmente, quando esta está tão gelada quanto nós.)

Passada a agitação das eleições para a Assembleia da República e, no que concerne aos advogados, esperando pacientemente que a campanha e as promessas (a serem esquecidas por quem as profere no dia seguinte…) findem, olho para a espuma dos dias. Compulsadas as notícias e as redes sociais, pasmo com a circunstância de ter merecido mais atenção a saia de um assessor (ainda por cima, saia essa de péssimo gosto) do que a circunstância de dezenas de pessoas terem sido descobertas mortas num camião, alegadamente por terem viajado dias enfiadas num ambiente de temperaturas negativas. Na expectativa de uma vida melhor, cruzaram-se com uma morte que, atentas as circunstâncias, terá sido agonizante, perante o nosso olhar, entre uma garfada e outra, ao jantar.

A pergunta a fazer será menos o que aconteceu do que o que podemos fazer para que cenários dantescos de pessoas mortas, congeladas no camião, deixem de se repetir. Não me deparei, entre inúmeros posts e comentários sobre a dita saia de mau calibre ou sobre as claques, com uma única reflexão sobre a questão destas pessoas e como alterar o profundo estado de miséria em que estas (e tantas outras…) tinham que estar para se meterem nesta viagem. Ou, no limite, sobre o que os países ditos civilizados devem fazer para impedir estes verdadeiros massacres, cuja valia reconhecida, para além de venderem jornais, é demonstrarem a nossa profunda indiferença perante iguais a nós.

Não sei em que exacto ponto perdemos a humanidade. Desconheço quando é que nos começámos a perder em pormenores e a ignorar o essencial. Trocámos ideais por intrigas, não combatemos ideias mas pessoas e, neste caminho, perdemos a humanidade.

O individualismo com que hoje vemos o mundo impede-nos de perceber que, num dado dia, a vítima seremos nós próprios. Se é certo que a probabilidade de morrermos num camião congelados a caminho de algures é ínfima, o frio que trazemos dentro matou, sem sombra de dúvida, o melhor que a humanidade pode ter. Como se usa dizer, os happy ends começam na vida real e acabam nas novelas. É, portanto, uma lógica similar à das histórias encantadas. Dão belos livros para a infância mas, na vida adulta, o desencanto fala muitas vezes mais alto. É o caso. É o meu caso perante estas pessoas.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.