Antes de se ter tornado na figura “problemática” que é hoje, Henry Kissinger era “apenas” um semi-célebre historiador. Em 1959, num artigo que escreveu para a revista “Foreign Affairs” acerca do conflito entre os Estados Unidos e o Império Russo travestido de União Soviética, Kissinger explicou, com uma simples observação, por que razão um elevado grau de incerteza é sempre inerente à tomada de decisões em política.
Se Hitler tivesse sido eliminado em 1936, ninguém saberia que o mundo teria sido salvo de uma devastadora guerra mundial e do Holocausto, porque nenhum desses terríveis acontecimentos teria ocorrido, e como não teriam ocorrido, ninguém teria como saber que tinham sido evitados. Por isso mesmo, a real dimensão dos benefícios desse imaginário cenário não teriam sido reconhecidos pelos seus contemporâneos, pois só a sua inexistência provou a sua necessidade para além de qualquer dúvida.
Quem acompanhe o debate público em torno da Covid-19 reconhecerá os méritos da observação de Kissinger. O fenómeno para o qual alertava é hoje visível no relativo conforto que muita gente tem ao sair à rua sem os mínimos cuidados de protecção, nos comentários críticos da “quarentena” nas “redes sociais” (abominável expressão), e nas análises na comunicação social desvalorizando a gravidade da doença.
Tendo as várias medidas de restrição – mais ou menos apertadas consoante o país – aparentemente contribuído para uma relativa contenção da propagação da doença (diminuindo o número de pessoas que cada indivíduo infectado acaba por contagiar) e, acima de tudo (ao evitar a saturação dos hospitais), para que não se chegasse noutros países ao ponto a que se chegou em Espanha ou Itália, muito boa gente se convenceu de que “afinal” a doença não é tão grave assim, e de que foi um erro encará-la como se fosse.
Por terem tido “sucesso” – na estreitíssima medida em que se pode classificar o que se passou como um “sucesso” – as políticas de “combate” à Covid-19 contribuíram para que se criasse a ideia de que aquilo que teve “sucesso” era afinal desnecessário.
Ao mesmo tempo, os custos dessas medidas, visto que elas foram efectivamente postas em prática, são também eles efectivamente sentidos, ao contrário dos custos meramente potenciais da sua não aplicação. Não é por isso de espantar que muita gente, olhando para o resultado final, valorize mais – ou apenas – os custos reais das políticas de contenção dos vários países, em detrimento dos custos que elas terão permitido evitar.
Não se pense, no entanto, que este é um defeito dos críticos das diferentes medidas dos diferentes governos, nem um problema cognitivo ou défice de juízo que lhes seja exclusivo. Pelo contrário, é algo que se aplica também aos próprios governos, e aos que defenderam as medidas que adoptaram (entre os quais me incluo). Como só conhecemos os resultados efectivos do que foi feito, ignoramos (por não podermos conhecer) os potenciais resultados (positivos ou negativos) das alternativas que não foram seguidas.
Como tal, não podemos medir o quão melhores ou piores foram as políticas adoptadas: foram os benefícios do “confinamento” português superiores ao que teriam sido os benefícios de medidas mais próximas das que a Suécia adoptou? Teriam os custos económicos sido menos assustadores? Teria o número de mortos sido mais elevado? E na Suécia, como teria sido se se tivesse feito o que se fez cá? Como só foram adoptadas as medidas que foram adoptadas, nos países em que respectivamente o foram, qualquer resposta a qualquer uma destas perguntas não passará de especulação, por muito informada e até eventualmente correcta que possa ser.
Na realidade, podemos todos – defensores do “confinamento”, apaixonados pelo “modelo sueco” ou adeptos da ideia de que “isto não é pior que uma gripe” – especular o que quisermos, mas nenhum de nós pode realmente saber quantas pessoas teriam sido infectadas se as medidas de contenção adoptadas tivessem sido outras, tal como não podemos saber exactamente quantas pessoas teriam morrido, nem quantas das pessoas que evitaram ir ao hospital por outros motivos teriam tido menos medo e assim obtido os cuidados de saúde de que necessitavam, nem qual a dimensão do impacto económico de medidas menos restritivas ou da completa inacção.
Qualquer que tenha sido a opção que cada país tomou, a única coisa que é possível saber é qual o resultado concreto dessa opção. Mas continuará sempre a ser impossível saber o que teria acontecido se a opção tivesse sido a inversa, e por isso não poderemos saber qual das duas teria sido a melhor. Nós sabemos o que Hitler fez depois de 1936, mas não sabemos realmente o que teria acontecido se ele tivesse sido eliminado. Podemos imaginar que se teria evitado a guerra e o Holocausto, mas não podemos saber.
Ao contrário do que o outro senhor pensava, governar não é o mesmo que conduzir uma embarcação e a sua tripulação a um porto seguro. Infelizmente, nem sequer se parece com pilotar um avião sem a ajuda de qualquer aparelho de navegação.
Infelizmente, a política e a acção governativa (e como vivemos numa democracia, a de julgar os governos e as suas decisões) equivalem a pilotar um avião sem ajuda de qualquer aparelho de navegação e sem a possibilidade de, uma vez chegados a um destino, descobrir se era aí mesmo que queríamos chegar. Sempre foi essa a sua natureza. A epidemia e as suas consequências apenas o demonstram de uma forma particularmente drástica.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.