Uma das coisas que aprendemos na escola é que o Homem do Renascimento, a epítome daquilo que mais promissor pode ser o Ser Humano: a capacidade de se ser mais completo, de não se dedicar apenas a um interesse, de desenvolver muitas ideias de variadas perspectivas, é muitas vezes identificado com o a figura de Leonardo Da Vinci.

Da Vinci foi cientista, matemático, engenheiro, inventor, pintor, arquitecto, poeta, músico, escultor, abraçou o que teve interesse, tudo sem educação formal: os tempos eram outros e o tempo também. Prolífico como foi, a maioria das suas ideias nunca chegaram a ser materializadas. Foram projectos e mais projectos que ficaram nas gavetas, nos esboços que fez, na sua memória e imaginação.

Da Vinci é quase o oposto da eficiência e especialização que hoje em dia o mercado de trabalho pede. Aliás, na Universidade dos nossos dias não teria emprego, certamente: qual seria a sua linha de investigação para ter um CV coerente? Em que subáreas se especializaria? Iria a uma entrevista de emprego para dizer que se interessava por pintura, pelo corpo humano, por máquinas e edifícios? Então e a sua visão para “daqui a cinco anos”?

Obviamente que qualquer comissão de recrutamento veria em tantos interesses apenas razões para o avaliar como não focado, desnecessário, logo, incentivador de término de hierarquias, e por aí fora. Os dias de hoje exigem que nos foquemos, façamos sem questionar, avancemos para o que dá resultados imediatos e nos cinjamos a ser aquilo que devemos ser: previsíveis e atinados.

Também hoje a visão de Wilhelm von Humboldt, com a sua noção de uma educação holística, a sua Bildung – num auto-desenvolvimento quer em termos do seu conhecimento como da sua cultura, onde o espírito, a mente, o coração e a alma se alinham – baseada em princípios humanistas, estará completamente desactualizada. Aliás, a ideia romana de corpo são em mente sã ali se alinha, como se alinha a ideia telhardiana de complexidade crescente e crescente desenvolvimento interior e, finalmente, a concepção grega do Homem enquanto medida do que é e do que não é.

Não teoricamente mas na prática, o que hoje conta para o mercado de trabalho na Universidade, mas não só, é a especialização. E, claro, a quantidade. A quantidade na produção de artigos, livros e outros que tais, que não reflectem, na sua grande maioria, um pensamento que não seja alinhado, copiado, baseado em algo já existente. E não, não estou a falar na ciência enquanto processo cumulativo. A história de estarmos “aos ombros de gigantes”.

Eventualmente por causa do anterior, nem o método histórico, nem as ciências sociais, e muito menos as artes, poderão ser incentivados e deixados livres. Essas áreas do saber obrigam-nos a ir por outros caminhos, os que permitem a perspectiva humboldtiana dos indivíduos enquanto seres autónomos, cidadãos capazes de pensar por si, de criarem o seu próprio pensamento. E, eu diria mesmo, de serem capazes de se dedicar a vários interesses, e, portanto, a apresentarem outras soluções para aquilo que são outras questões.

Essa parte necessária da criatividade, a que tem permitido ao Ser Humano sê-lo, terá hoje menos interesse, por isso, Da Vinci certamente estaria desempregado se por aqui andasse nos dias que correm.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.