A história nunca começa no dia da manchete. É por isso que antes de se falar do cerco a Gaza, é preciso recuar. Em 1948, nasce o Estado de Israel; em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, Israel ocupa a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Décadas depois, os Acordos de Oslo tentam lançar uma paz duradoura, mas o fracasso foi quase escrito no pré-ambiente de ocupação, colonatos e humilhação diária. A retirada unilateral israelita de Gaza, em 2005, deixou o território bloqueado por terra, mar e ar. Dois anos depois, o Hamas (grupo terrorista) toma o poder, expulsando a Autoridade Palestiniana. Desde então, Gaza é simultaneamente uma prisão a céu aberto e um barril de pólvora. Não se trata de uma guerra entre exércitos: é um abismo entre uma potência militar e uma população encurralada.

 

Mas 2024 e 2025 não são apenas mais um episódio. São o ponto de viragem. O massacre de 7 de Outubro, perpetrado pelo Hamas, é indesculpável e inaceitável. Terroristas invadiram território israelita, mataram civis, torturaram famílias, raptaram mulheres e crianças — algumas ainda hoje em cativeiro. Qualquer consciência liberal e humanista não pode senão condenar este acto, frontalmente e sem ambiguidades.

 

Contudo, é precisamente por termos a obrigação de condenar o terrorismo que temos também o dever moral de rejeitar a resposta indiscriminada. O governo israelita de Benjamin Netanyahu tem conduzido uma operação que deixou de ser militar e passou a ser punitiva — quase retaliatória pessoa a pessoa. Não se combate terror e terrorismo com cerco total, nem se defende a liberdade deixando populações inteiras, mulheres e crianças, morrer à fome. A distinção entre Estado e milícia é precisamente esta: o primeiro tem limites; o segundo não.

 

Benjamin Netanyahu é o primeiro-ministro mais duradouro da história de Israel. Mas também é, neste momento, o mais fragilizado. Sob investigação por corrupção, pressionado por aliados ultranacionalistas e acusado por antigos chefes militares de falhar redondamente na protecção de civis no 7 de Outubro, Netanyahu responde à sua crise interna com uma fuga para a frente. Isolado, radicalizado e prisioneiro de um discurso de força total, o seu governo abraçou uma estratégia de terra queimada, quer militar, quer política.

 

Na Faixa de Gaza, os números são claros: dezenas de milhares de mortos, entre os quais milhares de crianças. Hospitais destruídos, comboios humanitários bloqueados, jornalistas e trabalhadores humanitários abatidos. Fala-se, cada vez mais, na fome como arma de guerra. O próprio Tribunal Penal Internacional já avançou com pedidos de mandado de captura para Netanyahu e o seu ministro da Defesa, por crimes contra a humanidade. O que está em causa deixou de ser a segurança de Israel. O que está em causa é o futuro da sua legitimidade moral.

 

Importa fazer uma distinção clara e firme: o povo palestiniano não é o Hamas. Da mesma forma, o povo israelita não é o governo de Netanyahu. Israel e o seu povo são uma sociedade extraordinária, vibrante, democrática, com uma história de resistência e inovação. Os palestinianos são um povo espoliado, fragmentado, empurrado de campo de refugiados em campo de refugiados, sem horizonte político, económico ou identitário. Ambos merecem mais do que a lógica de espelho e vingança em que foram encerrados.

 

A Europa começa finalmente a perceber isso. Após décadas de ambiguidade, há uma mudança visível no discurso e na acção de vários países. Espanha, Irlanda, Noruega e Eslovénia reconheceram formalmente o Estado da Palestina. A Holanda lidera um movimento para suspender o Acordo de Associação entre a UE e Israel, com base no artigo que obriga ao respeito pelos direitos humanos. Mesmo países tradicionalmente aliados de Israel — como a Alemanha e a França — manifestaram publicamente a sua profunda preocupação com a ofensiva em Gaza.

 

Mas reconhecer não é ceder. É tornar possível a negociação. Não se pode exigir aos palestinianos que tenham um interlocutor “credível” se lhes recusamos o direito à existência política. Há hoje apenas 11 dos 27 países da União Europeia que reconhecem o Estado da Palestina. Essa hesitação alimenta o impasse. O Hamas, organização terrorista, prospera precisamente neste vazio. Um povo sem Estado, sem representação, sem horizonte, torna-se presa fácil do radicalismo.

 

Há caminhos a seguir. A Europa tem instrumentos concretos: suspender acordos comerciais e de cooperação com o governo israelita enquanto este não respeitar o direito internacional; aplicar sanções pessoais aos membros do governo de Netanyahu; reforçar a ajuda humanitária de forma directa, não condicionada à boa vontade de Telavive. Tal como se fez com a Rússia de Putin, também aqui deve aplicar-se o princípio da coerência: não há excepções quando está em causa a dignidade humana.

 

O argumento de que “Israel está apenas a defender-se” tornou-se insustentável. Não porque o direito à defesa não exista, mas porque esse direito não pode incluir fome, destruição sistemática e ataques a campos de refugiados. Se aceitarmos esta lógica, abrimos a porta a todas as outras atrocidades. O Ocidente — e a Europa em particular — tem de voltar a ocupar o seu lugar como defensor do direito internacional, sob pena de se tornar irrelevante.

 

Este artigo não é escrito contra Israel. Pelo contrário: é escrito em nome do melhor de Israel. Em nome dos seus intelectuais que se opõem ao cerco; dos seus reservistas que se recusam a combater em operações desproporcionadas; dos seus antigos primeiros-ministros que pedem eleições antecipadas; das famílias das vítimas do 7 de Outubro que exigem o fim da guerra porque sabem que mais guerra é mais morte — dos dois lados.

 

Chegou a hora de dizer basta. Gaza não é apenas uma questão geopolítica. Gaza é o espelho mais cruel da nossa incapacidade de construir paz. E se Israel quer continuar a ser reconhecido como uma democracia, então terá de o provar — não com tanques, mas com humanidade.