Não vale a pena, todos nós somos de alguma forma racistas ou, pelo menos, convivemos pacificamente com algum tipo de racismo. Brancos em relação a negros, árabes, índios, chineses e ciganos, e cada um destes em relação a todos os outros. É o instinto básico em relação à diferença. Um negro de Ferrari é, para a maioria de nós, futebolista. Um cigano de Porsche é um feirante rico. Um chinês com uma loja só vende lixo. Um árabe a caminho da mesquita não é de confiar. Todos eles terão os seus próprios estereótipos para os brancos. Todos padecemos deste preconceito induzido pelos lugares comuns. Quando fazemos a primeira viagem aos Estados Unidos ficamos impressionados; em LA, uma percentagem apreciável dos supercarros é guiada por negros e em Bel-Air há muitas mansões de negros com jardineiros asiáticos, criadas mexicanas e motoristas brancos. Em Nova Iorque, Wall St. tem gente de todas as cores e feitios e as mesas do Pierre ou do Nobu distribuem-se em função do dinheiro, não da raça. Os mais incautos e benévolos dirão que é a prova de que não há racismo dos EUA. Nada mais errado. O sistema americano de reconhecimento estrito do mérito e da capacidade de trabalho, troca facilmente a cor pelo dinheiro, possibilitando, e ainda bem, a ascensão rápida dos excepcionais, independentemente da cor, credo ou orientação sexual. Mas, poderá a possibilidade de ascensão dos excepcionais mascarar a situação geral no país? Claro que não.

A escravatura durou até finais do século XIX; ainda há muita gente viva cujos avós foram escravos, seres humanos tratados como mercadoria. Ainda se guardam muitas fotografias dos avós naquele dia especial em que podiam usar sapatos e uma roupa diferente dos trapos que usavam nos trabalhos forçados nos campos de algodão do sul. Poderá, em consciência, algum de nós avaliar a profundidade do estigma provocado por tão aviltante circunstância? 1965, sim 1965, quando o homem já estava no caminho para a lua, foi o ano em que os afro-americanos puderam pela primeira vez votar. O mesmo Presidente Johnson viria a assinar o Fair Housing Act, permitindo-lhes aceder às mesmas casas e bairros dos brancos em 1968, sim 1968! Pensarmos que estes horrorosos traumas desaparecem porque a competitividade do sistema permite que um punhado de excepcionais use um Patek, conduza um Bentley e tenha casa em Cape Cod, é uma falácia ignorante ou mal intencionada. A chaga está lá, e precisa de tempo, de justiça e de inteligência da parte de todos para ir sarando, para permitir a paz. Os grandes processos de reconciliação nacional precisam de homens de paz, de grande carácter, que deem o exemplo de onde ele deve vir em primeiro lugar. Por razões diferentes, os extremismos e os populismos são os maiores inimigos destes processos reconciliatórios, é assim nos EUA, está a ser assim em Espanha.

Em 1992, o caso Rodney King, em LA, deu-nos uma perspectiva muito clara dos problemas e traumas que continuam ainda muito à superfície. Os riots de LA não aconteceram para pilhar lojas e roubar electrodomésticos. Aconteceram porque Rodney King, negro, foi espancado sem razão e filmado.

Em 2020, os riots por toda a América não aconteceram para pilhar lojas, roubar ténis Nike e televisores. Deflagraram porque George Floyd  foi assassinado da forma mais repugnante por um polícia branco, com a ajuda de outros polícias brancos, e tudo foi filmado. O filme mostra a autoridade do Estado a asfixiar sem razão e sem clemência um negro subjugado no chão. Uma situação que se repete vezes demais e essencialmente sobre os mesmos. Para uma população estadual com 19% de afro-americanos, dois terços das 428 imobilizações registadas por joelho na garganta foram sobre negro. Esta é a causa dos tumultos.

É obvio que nestes casos há infiltrações, indução ao caos por extremistas de diversa ordem, parasitismo de toda a espécie. É obvio que condeno a Antifa e todas as organizações especializadas em parasitar e desvirtuar estes movimentos sociais. São gente desprezível, e como tal merecem ser tratados. Mas, são parasitas oportunistas, não são a causa real do que realmente se passou.

A América nunca esteve tão isolada e dividida como está hoje. Donald Trump, num caminho que Sarah Palin ensaiou sem sucesso, apostou tudo na divisão da América, no entrincheiramento feroz e irracional de americanos contra americanos, e destes contra o mundo. O ódio, a provocação gratuita, o estilo arrogante e insolente são as suas imagens de marca. A mentira, a narrativa fake, a fuga à responsabilidade, a acusação permanente de tudo e de todos, a ameaça e o tom beligerante, poderão gerar tudo menos paz e concórdia. Liderou de forma criminosamente irresponsável o país rumo a um caos pandémico sem precedentes, fugindo às responsabilidades, atirando em todas as direcções, de mentira em mentira, de erro em erro. O país está em fogo larvar desde o dia em que entrou na Casa Branca, foi assim que quis desde o primeiro minuto, ao estilo Apprentice; mas a América não é um reality show em Manhattan. A morte bárbara de George Floyd foi o detonador, a razão visível e incontornável para um dos lados dizer basta. O que se seguiu, a ameaça prepotente e despótica de enviar o exercito dos Estados Unidos combater cidadãos americanos dentro do seu território, a dispersão violenta de manifestantes pacíficos para fazer um número absolutamente miserável empunhando a Bíblia Sagrada, em repugnante negação de todo o seu conteúdo, só provam a urgência do regresso da América a um caminho de paz e de reconciliação. Um caminho que será lento e que exigirá os melhores a darem o seu melhor.

Por fim, uma palavra para Terrence Floyd, irmão de George Floyd, e o extraordinário apelo à ordem e à paz que fez no elogio fúnebre do irmão assassinado. Esta é a diferença entre os Homens e quem não percebeu a exigência que a dignidade humana encerra. A sua imagem, as suas palavras merecem ficar gravadas na nossa memória, para recurso e inspiração de cada vez que formos tentados a ser menos Homens.

Enquanto faço a revisão deste texto, tomo conhecimento da ruptura do Secretário de Defesa Mark Esper com Donald Trump, basicamente porque Esper não colabora com a perversão das instituições e dos princípios que fazem a democracia americana uma referência. O sistema reage e protege-se. Há esperança.

Let us all breathe!