Em 1972, o ativista político americano Ralph Nader definiu a prática de whistleblowing (referência desportiva à prática do árbitro apitar o jogo) como o “ato de um homem ou mulher que, imbuídos da crença de que o interesse público supera o interesse da organização a que pertencem, apitam para denunciar que a organização está envolvida em atividade corrupta, ilegal, fraudulenta ou nociva.”

Em anos recentes não têm faltado manchetes de jornais a revelar escândalos internacionais de natureza criminosa – as revelações de Edward Snowden, Cambridge Analytica, Panama Papers, LuxLeaks, Football Leaks – com informações obtidas através da prática de cibercrime.

O caso de Rui Pinto, denunciante do Football Leaks, detido em prisão preventiva desde 22 março de 2019 e acusado de 90 crimes, chegou a Portugal envolto numa acesa disputa clubística e manchado pela tentativa de extorsão de Rui Pinto à Doyen Sports que não se enquadra na prática de whistleblowing. Contudo, tal não inviabiliza que a sua restante atividade de denúncia se possa enquadrar legalmente nessa definição, ainda mais à luz das revelações do caso Luanda Leaks, informação que expôs o saque da riqueza de Angola pela família de José Eduardo dos Santos, com base em 715 mil documentos fornecidos pelo advogado francês de Rui Pinto à Plataforma para a Proteção de Whistleblowers em África.

As informações obtidas ilicitamente por Rui Pinto — fala-se em 32 terabytes de documentos dos quais só foram revelados cerca de 3,4 terabytes, que já deram origem a dezenas de notícias — estão agora no centro de um problema de natureza legal e não têm faltado análises de juristas sobre o material probatório recolhido. Devem ou não ser aceites como provas material obtido por cibercrime, ainda mais se envolver informação de interesse público?

E eis-nos chegados à questão fundamental: o que é interesse público? Como avaliar o interesse público da denúncia por oposição ao interesse privado dos alvos denunciados? Num mundo em que os criminosos estão protegidos pelos melhores advogados e possuem recursos quase ilimitados, até onde deveremos ceder perante denunciantes para poder combater a criminalidade? As enormes dificuldades que a definição de interesse público acarreta têm de começar por ser resolvidas.

Uma coisa é certa. As notícias sobre os documentos obtidos por Rui Pinto não irão desaparecer tão cedo. Devido à corrupção, a União Europeia estima que está a perder em cada ano 120 mil milhões de euros em impostos, um valor que poderia ser substancialmente abatido com uma proteção legal mais eficaz a denunciantes. Não por acaso, o Parlamento e Conselho Europeus têm vindo a adotar recentemente novas diretivas de proteção de whistleblowers.

Além disso, os discos rígidos foram copiados pela justiça francesa antes da extradição de Rui Pinto para Portugal, impedindo a sua destruição, o que fará certamente com que o assunto não morra com a sua prisão preventiva. Resta saber se Portugal está interessado em acompanhar essa discussão vital que já está a ser feita a nível europeu e internacional, tendo em conta a circunstância de ter um dos seus cidadãos no olho do furacão.