Os gregos antigos, quando acorriam ao teatro, conheciam as histórias das tragédias em cena. Os heróis cometeriam um erro fatal e a sucessão de acontecimentos, fora do seu controlo, levá-los-ia a uma punição desproporcionada. O erro nascia do orgulho e da arrogância com que desafiavam a vida e as forças divinas, o que os tornava bem humanos. E eram todos, heróis e plateia, recordados da fragilidade e da ausência de domínio sobre a vida.
Os contemporâneos perderam esta noção. Viciados nos finais felizes e na ideia de controlo, vamos ao espectáculo para – com uma ou outra reviravolta ou explosão – encontrar um final redentor, um equilíbrio justificador ou uma vitória dos heróis, mesmo que inverosímil. Pacificados com a ordem na arte que imita a vida, esperamos que a vida imite a arte.
Na noite de 23 de Abril, a Europa parecia aliviada. O segundo lugar de Marine Le Pen nas presidenciais francesas não estava além de uma medida de controlo. As elites receavam um confronto Le Pen-Mélenchon ou resultados que não deixassem antecipar o desfecho. Na primeira volta cada um segue as suas convicções, mas a segunda exige grande pragmatismo. Apenas 45% dos eleitores votou em Macron ou Le Pen – e a maioria terá de engolir sapos e escolher entre os dois. Um exercício racional, portanto.
Por isso, um confronto com a plataforma xenófoba de Le Pen deveria ser uma passeata para qualquer candidato. Uma barreira democrática erguer-se-ia, tal como em 2002, e a vitória do oponente estaria garantida. Mas os acontecimentos recentes parecem saídos de uma ficção de rara intensidade. As sondagens anunciam uma quebra das intenções de voto em Macron e Le Pen já pontua cerca de 40%.
Impossível, dir-nos-iam todos até há umas semanas: a Frente Nacional seria sempre esmagada, mesmo passando a uma segunda volta. A húbris das elites políticas e económicas foi contar com um desfecho mecânico. Marine Le Pen não é um fenómeno novo. Ela beneficia de uma implantação territorial sólida e suavizou a imagem do partido fundado pelo pai. E a sua normalização foi facilitada pela colagem da direita democrática às suas propostas, de Sarkozy a Fillon.
O cenário parece saído de um manual. A dívida pública francesa trepou 30% do PIB em dez anos. O crescimento económico é anémico, oscilando nos anos de Hollande entre 0,2% (2012) e 1,2% (2016). Uma nação pressionada pela crise, com um partido de extrema-direita bem implantado, faz dos imigrantes os bodes expiatórios da sua situação. E, tal como nas eleições americanas, um combate entre uma candidatura de sistema, que não entusiasma, e uma demagoga, com um grupo fiel, cria as condições para uma catástrofe.
É neste aperto que subitamente todas as baterias se viram para Mélenchon. A sua ambiguidade, recusando apoiar Macron, é a húbris final desta tragédia: aprofunda a normalização de Le Pen e menoriza o perigo com que a França e a UE estão confrontadas. O tacticismo não abona a seu favor, mas revela como conhece bem os seus apoiantes mais fervorosos. Na consulta interna, em que só participaram 243 mil pessoas, uns estrondosos 65% preferem abster-se ou votar em branco e nulo.
Consultar o movimento para definir a sua posição na segunda volta poderia ser uma boa estratégia de consolidação. A definição da política francesa, marcada pela fragmentação partidária e pela descrença nos partidos, segue nas legislativas em Junho. E os 19% da France Insoumise abrem espaço à disputa da liderança na esquerda francesa. Mas Mélenchon desertou do primeiro combate e confia nos outros para fazerem a barreira à extrema-direita. Isso é dificilmente um registo digno de um candidato a primeiro-ministro. Tenho esperança que a maioria dos seus sete milhões de votantes se mobilize em sentido oposto.
Apesar do repúdio que a atitude de Mélenchon me suscita, ele não apelou ao voto na extrema-direita. Vários estudos indicam que o reforço eleitoral de Marine Le Pen vem dos apoios de Fillon, apesar dos apelos em sentido contrário. Derrotada ou não, Le Pen tem campo fértil para avançar no futuro. E a irresponsabilidade da equivalência entre o liberalismo e o fascismo e a recusa do frentismo na esquerda iliba Macron e o seu vazio, o apoio dos gaulistas de Dupont-Aignan e a decisão dos muitos votantes envergonhados que, não admitindo nas sondagens, tornarão a Frente Nacional o maior partido nas urnas. Domingo que vem, a Europa toda vai a votos.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.