Os espaços florestais (aqui entendidos como o “negativo” dos espaços urbanos e agrícolas) em Portugal, tal como todos os territórios, são uma construção social, lugar de confronto, de tensões, de conflitos de uso e de apropriação e transformação, ou seja, estão sujeitos a múltiplos interesses, na sua maioria legítimos, mas muitas vezes antagónicos.

Esses espaços, num mundo em rápida mudança e com a desregulação climática a contribuir para que os grandes incêndios se tornem cada vez mais frequentes, maiores e mais destruidores, levando o fogo até às interfaces urbano-florestais de grandes cidades, como Coimbra (2003) ou Braga (2017), convertendo o regime excecional de incêndios extremos num novo regime “normal” de incêndios, apresentam profundas fragilidades que os tornam particularmente propensos aos referidos grandes incêndios, os quais, só no século XXI, tiraram a vida a mais de 200 pessoas em Portugal, prevenindo o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) que o País “deverá estar mais preparado para eventos extremos, onde os riscos poderão ser acrescidos e onerosos”.

Essas fragilidades são diversas e complexas, pois, se a ação humana, quer por negligência, quer de forma intencional é fulcral para o deflagrar de incêndios, o desordenamento do território e a falta de gestão dos espaços florestais, a par da meteorologia, do relevo, da deteção, e da eficácia da primeira intervenção e do combate, são algumas das variáveis fundamentais na explicação da dimensão que alguns incêndios atingem.

Efetivamente, o país, foi assistindo ao aumento, tanto do número como da dimensão dos “grandes incêndios” e, especialmente, da sua capacidade destruidora. Se até 1986 nunca tínhamos sido flagelados por um incêndio com dimensão superior a 10.000 hectares, 2003 viu franquear a marca dos 20.000 hectares e, 2017, por duas vezes, a dos 25.000 hectares, duas vezes a dos 30.000 hectares e uma, a dos 40.000 hectares.

Neste contexto, sobretudo a partir do final do último quartel do século passado, e com redobrada importância depois de 2003 e de 2017, os incêndios florestais tornaram-se uma das temáticas mais presentes nos debates no país, em diferentes escalas (científica, técnica, política…), quer devido aos seus nefastos e dramáticos impactes (humanos, ambientais, sociais e económicos), quer em consequência de uma muito maior divulgação mediática e de um nível muito superior de exigência, por parte da sociedade.

Com efeito, na sequência dos graves e dramáticos incêndios de 2017 e, esgotado o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra incêndios Florestais (PNDFCI, 2006-2018), surgiu, no âmbito da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), entretanto criada, o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR), o qual assenta em dois eixos, a Gestão de Fogos Rurais e a Proteção Contra Incêndios Rurais, pretendendo-se, entre outros objetivos, uma aproximação da prevenção e do combate e a construção de paisagens rurais sustentáveis.

Com base nas orientações do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT), na Estratégia Nacional das Florestas 2030 (ENF 2030) e na Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade 2030 (ENCNB 2030), surgiu o Programa de Transformação da Paisagem (PTP), o qual configura uma estratégia para os territórios vulneráveis de floresta com elevada perigosidade de incêndio. Trata-se de um Programa da responsabilidade da Direção Geral do território (DGT), tendo como outras entidades envolvidas no planeamento e acompanhamento das medidas programáticas a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) e o Instituto de Conservação da Natureza (ICNF).

Em termos conceptuais e programáticos, o Programa de Transformação da Paisagem (PTP) responde também às orientações do Programa de Valorização do Interior e a sua execução no médio e longo prazo é efetuada através de quatro medidas programáticas:

1) os Programa de Reordenamento e Gestão da Paisagem (PRGP) – destinam-se a planear e programar a transformação da paisagem em territórios florestais vulneráveis, visando uma paisagem multifuncional e resiliente, novas atividades económicas e a remuneração dos serviços dos ecossistemas;

2) as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP) e as Operações Integradas de Gestão da Paisagem (OIGP) – visam uma abordagem territorial integrada para dar resposta à necessidade de ordenamento e gestão da paisagem e de aumento de área florestal gerida a uma escala que promova a resiliência aos incêndios, a valorização do capital natural e a promoção da economia rural;

3) o Programa Condomínios de Aldeia – tem como objetivo dar apoio e resiliência às aldeias localizadas em territórios vulneráveis de floresta;

4) o Programa Emparcelar para Ordenar – visa fomentar o aumento da dimensão física dos prédios rústicos e, dessa forma, dar mais escala às propriedades, contribuindo para a viabilidade e sustentabilidade económica das explorações que aí estejam instaladas ou venham a instalar-se.

Ainda na sequência dos referidos incêndios de 2017, foram vários os documentos a reconhecer a carência de incorporação do conhecimento científico e técnico nas decisões operacionais, como por exemplo a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-A/2020 de 16 de junho, que aprova o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais ou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 176/2018 de 18 de dezembro, que estabelece o modelo de formação na área de proteção civil, a que se juntou, no passado dia 22 de março, a Resolução de Conselho de Ministros n.º 24/2021, que visa reforma do modelo de ensino e formação em proteção civil.

A referida Resolução do Conselho de Ministros de 2018 preconizava uma reforma assente em três princípios, o da “aproximação entre prevenção e combate”, o da “profissionalização e capacitação do sistema de gestão integrada de fogos rurais” e o da “especialização”, sendo que o terceiro exige o envolvimento das instituições académicas e científicas, com a intervenção de especialistas nas áreas relevantes, de modo a incorporar conhecimento nas ações de planeamento, prevenção e gestão de ocorrências, bem como a qualificação técnica de todos os intervenientes.

Com efeito, esta Resolução define ser necessário, no âmbito dos desafios que se colocam às autoridades de proteção civil, reponderar o modelo de formação atualmente existente, fazendo-o evoluir no sentido de promover uma maior articulação entre as entidades que atuam nesta área, designadamente através da criação (ainda não concretizada!) de um consórcio de instituições de ensino superior que desenvolvam atividade de formação ou investigação nas áreas relevantes para a proteção civil, especialmente nas seguintes áreas disciplinares: Proteção Civil, Geografia e Planeamento Territorial, Engenharias e Ciências Florestais ou Naturais, Meteorologia, Oceanografia e Geofísica, Sistemas de Informação Geográfica, Ordenamento e Gestão do Território.

No entanto, deverão ser igualmente acrescentadas aquelas que são amplamente reconhecidos como vitais nesta área, como sejam, sem ser exaustivo, as ciências da educação, as ciências da comunicação, a sociologia ou o direito.

Sendo a proteção civil uma responsabilidade de todos, uma aposta prioritária na prevenção, alavancada na educação, na gestão florestal e no ordenamento do território, permitirá reduzir a ocorrência e as consequências dos grandes incêndios, quer pela adoção de medidas prévias conducentes à redução das vulnerabilidades, quer pelo melhor planeamento das ações, quer ainda, pela melhor preparação, coordenação e cooperação de todos os envolvidos.

A criação e assimilação de uma cultura de autoproteção e de responsabilidade, individual e coletiva, que passa, por exemplo, por evitar comportamentos de risco, é um primeiro passo, mas essencial para que as atividades de proteção civil não se esgotem em ações de socorro/gestão da emergência e se possam focar no planeamento e na preparação e apresentem um elevado grau de prontidão.

Também a formação de técnicos superiores, altamente qualificados (licenciados, mestres e doutorados) é imprescindível para que a aposta no referido planeamento e na preparação (a dimensão preventiva deverá ser pouco ou nada visível, mas de grande dimensão), seja uma realidade e que permita, igualmente, melhorar toda a estrutura institucional da proteção civil, ainda muito focada no socorro (deverá ser visível, mas mínimo, por ser desnecessário, mas altamente eficaz, sempre que atue).

Assim, é crucial, sem descurar e continuando a apostar nas vertentes do socorro, da recuperação e da reabilitação, reforçar a vertente da segurança e passar a priorizar a vertente da prevenção (lato sensu), com uma componente científica e técnica de elevado nível, que terá que ser alicerçada numa aposta séria no ensino, nos seus diferentes patamares, desde o ensino básico, onde, desde o final do projeto PROSEPE (Projeto de Sensibilização e Educação Florestal da População Escolar) muito pouco tem sido feito, até ao ensino superior, formando assim cidadãos mais conscientes e licenciados, mestres e doutores, com competências científicas e técnicas e o domínio de ferramentas variadas, que lhes permita assumir cargos que impliquem a gestão e a direção de equipas multidisciplinares, a decisão e a gestão operacional da emergência, mas também estarem preparados na perspetiva da estratégia preventiva e do planeamento.