Há alguns dias deparei-me com um velho jornal do mês de abril onde vinha uma entrevista com o Bruno Lage, treinador do Benfica, em que ele afirmava: “os jogadores estão a fazer de mim um treinador”. É raro encontrar quem expresse uma consciência tão clara da importância dos outros para a sua própria pessoa. E, no entanto, a investigação desenvolvida no domínio da psicologia social tem mostrado que somos, em grande parte, o que os outros fazem de nós.

As expectativas que aqueles que nos rodeiam desenvolvem a nosso respeito são fundamentais para traçar o nosso caminho. Quando acreditam nas nossas capacidades e nos desafiam para nos superarmos, ficamos mesmo melhores pessoas (como no caso do Bruno Lage); mas quando desistem de nós e deixam de acreditar que vamos ser capazes (como acontece na escola e no trabalho a tantos jovens que vêm de contextos desfavorecidos), é muito mais difícil melhorar. As expectativas, provenham elas de estereótipos sobre grupos sociais ou de crenças pessoais, têm o poder de se concretizar, são uma espécie de profecias auto-confirmatórias. Quando elas são positivas, é-se mais afável na comunicação; a pessoa fica mais confiante e à vontade, o que a ajuda a ser mais competente – confirmando a expectativa.

Acontece o contrário quando se está rodeado de expectativas negativas: há menos paciência, menos simpatia, a pessoa fica mais tensa, o que prejudica o seu desempenho. Isto acontece à nossa volta constantemente, por exemplo, em casos como a avaliação de mulheres para posição de liderança nas organizações, a apreciação da condução de pessoas mais velhas ou a avaliação de crianças ciganas na escola. E, como usamos os outros como espelho para conhecermos o nosso valor, interiorizamos estas avaliações sem percebermos que elas são resultado de um jogo viciado, que mantém as desigualdades sociais: faz com que quem já tem a vida facilitada tenha de se esforçar menos para singrar, e que quem tem uma vida difícil tenha de se esforçar ainda mais para conseguir o mesmo.

A frase do Bruno Lage é tanto mais espantosa, quanto vivemos num mundo dominado por um enorme individualismo, que valoriza a autodeterminação e a independência. O ser capaz de ter sucesso por si próprio, o ser “special one”,  diferente dos outros. Por isso, afirmar que se deve aos outros o sucesso é corajoso por ser contra a corrente, mas tem muito de verdade. A psicologia social mostra que muitas das nossas escolhas e mesmo a ideia que fazemos de nós próprios são determinadas em grande parte pelas relações que mantemos com as outras pessoas. Como é que um menino negro, que estudou numa escola de brancos, com professores brancos, auxiliares brancos e livros para brancos e que viu desde cedo os professores desistirem dele, os colegas excluí-lo e de uma maneira geral dizerem-lhe que ele não é capaz, como é que este menino pode construir uma autoestima positiva? Como pode estar em igualdade de circunstâncias com outros quando vai para um exame?

Não, não somos tão autónomos ou independentes como pensamos. Somos o resultado de muitas experiências, todas elas experiências sociais. Sem o ambiente social em que nos movemos – ou noutro ambiente social – seríamos pessoas diferentes. E chegamos mesmo a ser pessoas diferentes em diferentes contextos sociais.  Somos capazes de exprimir opiniões contraditórias em grupos diferentes, como por exemplo de concordar num contexto com as “barrigas de aluguer” e noutro discordar. Para não ferir suscetibilidades, para não provocar divergências, para não sermos vistos como diferentes – tudo muito boas razões, mas o que é feito da nossa tão proclamada independência e “personalidade”?

A crença no individualismo e em que, com força de vontade, cada um consegue superar as dificuldades que enfrenta e ter sucesso, está profundamente enraizada. E está associada uma outra crença muito difundida: a da meritocracia. Acredita-se que o mundo é justo e que o sucesso se alcança através do mérito pessoal. Que quem se esforça sempre alcança, que quem merece irá ser bem-sucedido, e que quem não o é alguma coisa fez para isso, alguma culpa tem.

Estas ideias de sucesso – ou de insucesso – pressupõem pensar nas pessoas como indivíduos isolados, a viver num vacum social, como se todos fôssemos iguais e não houvesse barreiras ou incentivos às nossas ações. É uma ideia profundamente falsa, porque sabemos todos que o jogo está viciado à partida, que a nossa sociedade vive assente em desigualdades que não têm nada de justas. Que não é necessariamente quem merece que tem mais, que nem sempre o esforço ou a bondade são recompensados.

Todavia, de acordo um estudo de uma equipa de psicólogos sociais com dados recolhidos junto de amostras representativas da população portuguesa, as ideias meritocráticas estão muito difundidas entre nós. Só cerca de metade das pessoas discordam de afirmações como a de que, “de uma maneira geral, as pessoas merecem aquilo que lhes acontece”, o que mostra que existe ainda uma grande adesão a estas ideias meritocráticas.

E não se trata “apenas” de ideias feitas. Estas ideias têm consequências negativas. A primeira é a validação das desigualdades sociais. A investigação na psicologia social mostra que as crenças individualistas e meritocráticas são um dos principais mecanismos cognitivos que mantêm a tolerância ou mesmo a cegueira face às desigualdades sociais. De facto, é nos países mais desiguais que as pessoas mais acreditam na meritocracia. É onde há maiores diferenças entre ricos e pobres que encontramos mais pessoas a aceitarem que o mundo é justo e que com esforço qualquer um consegue chegar ao sucesso.

E é também nesses países que se está menos consciente das diferenças entre ricos e pobres. Por exemplo, num estudo que realizámos em Portugal, um dos países mais desiguais da União Europeia, 80% das pessoas que inquirimos acha que ricos e pobres têm a mesma probabilidade de apanhar uma doença, e 95% acha que ricos e pobres estão igualmente expostos à poluição do ar. Nos países com maiores desigualdades, como é o caso de Portugal, achamos que quando o sol nasce é para todos, e ignora-se que os mais pobres morrem mais cedo, vivem em lugares mais poluídos e menos seguros e não têm as mesmas oportunidades que os mais ricos.

A segunda consequência do individualismo e da meritocracia é a culpabilização dos que não têm sucesso, dos que não têm emprego, dos que não vingam economicamente nesta sociedade. São considerados como perdedores, como inferiores, e, pior que isso, como em parte culpados pelo seu insucesso. Se está desempregado, alguma coisa há de ter feito para isso; se não consegue emprego é porque não se esforça o suficiente; se não teve média para entrar na universidade é porque não estudou o suficiente. Isto é, ao peso do insucesso junta-se o da culpa, e a consciência de ser visto pelos outros como um falhado não ajuda. Estas atribuições individualistas e meritocráticas do insucesso são uma forma adicional de discriminação e, por vezes, mesmo de desumanização destas pessoas.

A terceira consequência do individualismo é a dificuldade em pedir ajuda. A vida social é feita de interações e de trocas. Pertencemos a famílias, trabalhamos em equipas, vivemos em prédios e bairros, damo-nos com amigos. Estamos permanentemente em contacto com outras pessoas, a quem podemos estar mais ou menos ligados, mas com quem lidamos diariamente. É a nossa rede social, que, tal como uma rede de corda, serve para nos ligar a outros, mas também para nos segurar quando caímos.

Nestas interações tanto damos como recebemos. Cuidamos de amigos e familiares, organizamo-nos para estarmos presentes quando os outros precisam de nós. E, claro, se tudo correr bem também recebemos (e muito) dos que nos rodeiam. Mas é aqui que o perigo do individualismo espreita. Por acreditarmos que somos capazes de resolver todos os nossos problemas sozinhos, temos dificuldade em confiar suficientemente nos outros para nos colocarmos numa posição de vulnerabilidade e pedir ajuda quando precisamos. E há tantas alturas em que a nossa vida seria mais fácil se confiássemos nos outros e pedíssemos ajuda.

Este ideal de se ser uma “super-pessoa”, que é independente e “não fica a dever favores”, impede muitas vezes a proximidade de outros, o deixar que os outros cuidem de nós. Talvez por isso os níveis de solidão tenham crescido tanto numa sociedade em que é cada vez mais fácil estarmos em contacto com as outras pessoas.

Por tudo isto, reconhece-se cada vez mais que a aceitação e a assunção da nossa ligação aos outros é importante para a felicidade e para o bem-estar. É cuidando dos laços que construímos com as pessoas que estão à nossa volta que nos tornamos melhores pessoas. Mas é também aceitando a nossa dependência dos outros que podemos desmontar o mito do sucesso individual, olhar de frente para os preconceitos que mantêm as desigualdades e ajudar a construir uma sociedade mais justa.