Na passada sexta-feira, no debate quinzenal no Parlamento, antes da apresentação do Orçamento do Estado para o próximo ano, o primeiro-ministro não se cansou de falar da “justiça fiscal” que o seu Governo supostamente promove. Mesmo ignorando a questão de se a particular forma de redistribuição de riqueza de quem paga os impostos para as clientelas partidárias, bafejadas pela sorte do favor político, é realmente “justa”, este slogan de Costa é bastante ilustrativo da forma como a propaganda governamental não responde aos problemas reais de muitos portugueses: não há nada de mais injusto no que ao fisco diz respeito do que o modus operandi da Autoridade Tributária/ex-DGCI (tal como com as polícias políticas do antigamente ou os serviços secretos russos, o nome da coisa muda regularmente na esperança de que o facto de tudo continuar na mesma passe despercebido), à margem da razoabilidade e da lei, e sobre isso Costa nada diz ou faz.

Numa sociedade decente, liberdades fundamentais como a de não se ser à partida considerado culpado de um crime de que se é acusado, nem privado dos seus rendimentos sem uma justificação comprovada, estariam garantidas. Mas como explicou em tempos Tiago Caiado Guerreiro, o facto de em Portugal se abrirem cerca de 1100% mais processos-crime por incumprimento fiscal do que nos EUA, um país muito maior (e onde o IRS – o equivalente à nossa AT – é tudo menos brando), mostra bem como “o Estado faz maciçamente ilegalidades todos os dias”. Para “combater a fuga ao fisco” inverte o ónus da prova, apesar da lei teoricamente não o permitir, exigindo-lhes que paguem o que muitas vezes não devem e que provem a sua inocência para só depois, e só caso tenham sorte, receberem o que indevidamente lhes foi exigido pagar.

Todos os portugueses já receberam (ou conhecem quem tenha recebido) uma carta da AT a acusá-los de uma dívida que não têm, ameaçando-os de multas, penhoras ou processos judiciais caso esta não seja saldada, geralmente num prazo curto, na esperança de que ou a incompreensão do que lhe está a ser exigido (essas notificações são deliberadamente ilegíveis) ou o receio dos custos inerentes a um longo processo no tribunal, o levem a pagar sem protestar.

Se por acaso ou ingenuidade protestam, e os tribunais lhes dão razão, o Estado português mantém-se fora da lei, ignorando descaradamente essas mesmas decisões e continuando a abusar dos cidadãos indefesos. Tendo em conta que o Fisco tem cada vez mais informação acerca dos mais ínfimos detalhes das nossas vidas, a “janela de oportunidade” para que, do mais baixo funcionário ao mais alto dirigente político, se cometam os maiores e mais variados abusos com o poder imenso da máquina fiscal, fica cada vez mais escancarada.

Quando quem deve zelar pelo cumprimento da lei a ignora e viola recorrentemente, não há lei: quem lhe está sujeito não tem qualquer direito ou protecção, vivendo à mercê do arbítrio de quem o vigia, lhe rouba o que não teria de pagar, e não paga o que lhe deve. O problema não nasceu com este Governo. Mas ao falar de “justiça fiscal” sem sequer tocar nesta aberração, Costa mostra apenas que nada do que diz merece ser levado a sério.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.