São frequentes, na imprensa e nas redes sociais, os debates sobre inquéritos e processos organizados pelo Ministério Público que visam o mundo da política, dos negócios e do futebol, e as suas interligações.
Compete ao Ministério Público investigar situações em que existam indícios da prática, por parte de dirigentes políticos, empresariais ou desportivos, de crimes ou infracções mais ou menos graves, comummente englobadas na designação genérica de “corrupção” e, se concluir que essas actuações são legalmente puníveis, proceder à respetiva acusação em Tribunal.
E compete aos Tribunais julgar as pessoas que o Ministério Público acuse da prática desses crimes.
É uma função nobre. É a defesa da sociedade contra os efeitos nocivos que resultem da prática, por pessoas que se aproveitam indevidamente (e, portanto, ilicitamente) do poder inerente às posições de destaque que ocupam, de violações das normas legais vigentes, resultando na obtenção, para si ou para terceiros, de benefícios que normalmente não se verificariam (portanto, também ilícitos). É parte do exercício da Justiça, a principal e mais relevante função do Estado, da qual todas as outras decorrem.
Para poderem desempenhar correctamente as suas missões, os Tribunais e o Ministério Público gozam de independência face a outros Órgãos de Soberania ou de poder político. A independência do Ministério Público (que não se confunde com autonomia dos Magistrados) permite-lhe agir sem ter de solicitar autorização do Governo, do Parlamento, ou de quaisquer outros órgãos nacionais ou regionais, mas sob supervisão do poder judicial para salvaguarda do respeito dos direitos fundamentais.
Nos últimos anos, soubemos de vários inquéritos, com buscas e apreensões de elementos probatórios, e até algumas detenções para audição, que por vezes conduzem à constituição de arguidos. Esses inquéritos deviam rapidamente conduzir a um resultado, seja de arquivamento, sendo os arguidos deixados em paz por nada se ter provado, seja de acusação, para que o assunto fosse decidido pelos Tribunais. Mas demasiadas vezes eternizam-se sem produzir resultados, e acabam esquecidos.
Há também os mega-processos em que o Ministério Público aglutinou várias situações em que os principais visados são os mesmos. Resultaram em milhares de páginas de acusação. Estenderam-se pela instrução e pelo uso por parte dos arguidos dos meios de defesa que legalmente lhes assistem. Dá-se, então, o risco de prescrição dos crimes que eventualmente tenham sido praticados, impedindo os Tribunais de decidir sobre a acusação. Para mim, isto será um caso de denegação de Justiça. Não por causa dos direitos de defesa, mas sim da acusação demasiadamente ambiciosa.
Os processos seriam mais rápidos e bem elaborados e suportados factualmente se os esforços fossem concentrados num núcleo essencial de factos mais fáceis de provar sem grandes dúvidas, em vez de numa acusação vistosa. Até porque o eventual aumento da duração da pena resultante da cumulação de crimes não é proporcional ao esforço despendido na formulação da acusação.
Nos casos que afectam políticos, financeiros ou dirigentes desportivos, mais susceptíveis de chamar a atenção da opinião pública, a publicitação destes inquéritos e processos resulta num enorme efeito mediático. Mas quando processos destes são arquivados, ou os acusados são absolvidos, não existe nenhuma publicitação especial, nem retratação por parte de quem deu origem a todo este espectáculo. Estamos perante outro caso de denegação de Justiça, porque os incómodos e efeitos da publicitação do caso não são compensados.
Entretanto, as redes sociais incendeiam-se com especulações e “factos” que vão sendo “descobertos” e difundidos de post em post. Sabemos bem que quando a imprensa ou as televisões relatam que o Ministério Público abriu um inquérito (ou retomou outro que estava esquecido, como é o caso recente do “Tutti Frutti”), ou formulou uma acusação, a opinião pública, expressa sobretudo nas redes sociais, assume de imediato a presunção de culpa. É verdade que isso não é culpa dos jornais ou das televisões, mas não deixa de ser assim.
Cria-se, pois, mais uma forma, talvez mais grave, de denegação de Justiça.
Urge que se olhe para estas situações. É necessário que a Justiça seja célere, o que implica que os processos passem rapidamente da fase de investigação para a de acusação, respeitando o Estado de Direito e as garantias processuais dos cidadãos. Mas o interesse público exige também que a Justiça seja mais segura, eficaz e, já agora, justa, garantindo que o direito dos cidadãos, incluindo dos que ocupam posições de relevo, à reserva do seu bom nome e reputação antes de existir uma condenação, seja devidamente protegido.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.