O número de novas insolvências pessoais decretadas por tribunais caiu abruptamente para 1.240 no terceiro trimestre, segundo os dados do Ministério da Justiça. Com uma redução de 25,3% face aos três meses anteriores, e de 24,9% face ao mesmo período do ano passado, é atingido um valor historicamente baixo, só comparável, nos últimos anos, ao período em que a Troika aterrou em Portugal.
Entre janeiro e março de 2011, nas vésperas de o Governo pedir o resgate financeiro internacional, o número de insolvências pessoais atingia as 1.021, e nos três meses seguintes 1.242. Foi apenas o início de uma escalada que teve o seu auge entre 2012 e 2016, com o pico a ser atingido no final de 2014 (3.100 casos). Na última década tem havido uma redução progressiva, com estabilização nos anos pós-pandemia entre as 1.500 e 1.800 insolvências por trimestre.
Pelo meio, uma anomalia estatística, de abril a junho de 2020, quando Portugal se encontrava em estado de emergência pandémico: houve apenas 1.132 insolvências decretadas pelos tribunais de primeira instância.
Mesmo considerando os nove meses terminados em setembro, em que houve 4.612 insolvências pessoais, a redução é significativa: menos 13% do que em 2024. Em quase 15 anos, o número de casos até setembro só foi menor, e por pouca margem, em 2021 (menos 14 insolvências) e 2020 (menos 129), anos de limbo em que vigorou a moratória para o crédito à habitação. Antes disso, é preciso recuar novamente a 2011 (3.593 insolvências).
Mais problemas, menos dívida
Um dos fatores mais relevantes para as insolvências pessoais é a evolução do mercado de trabalho. “E a verdade é que a nossa taxa de desemprego está historicamente baixa”, salienta Natália Nunes, coordenadora do gabinete de proteção financeira da Deco, em declarações ao Jornal Económico. Também António Emílio Pires, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Judiciais (APAJ), nota que “estamos praticamente numa situação de pleno emprego, com a taxa de desemprego a um nível baixo como já não se verificava há alguns anos”. Entre julho e setembro, atingiu os 5,8% — em mais de duas décadas, a taxa trimestral só foi mais reduzida no segundo trimestre de 2020 (5,7%) e, antes disso, em 2002 (já numa outra série do INE). “As pessoas conseguem ter rendimentos e vão satisfazendo mais ou menos os compromissos”, afirma António Emílio Pires. “Isso tem atenuado o número de insolvências”.
No entanto, estes números não significam que as dificuldades desapareceram. “O que vemos agora são mais famílias com dificuldades financeiras, mas já não têm tanto o problema do crédito à habitação”, ressalva Natália Nunes. “As pessoas já não estão tão pressionadas porque o peso dos créditos não é tão grande como já foi”, apesar de as dívidas relativas à compra de casa “continuarem a ter um grande peso”. A menor incidência desse problema “também contribui para que não haja tantas famílias a irem ao tribunal pedir a sua declaração de insolvência”, explica a coordenadora da Deco.
António Brás Duarte, vice-presidente da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE)— que lidam com estes casos numa fase posterior — também coloca o enfoque na redução do endividamento. “O crédito malparado começa a ser uma expressão antiga, já não é atual”, sublinha o representante da ordem. Esses empréstimos bancários, que dificilmente serão reembolsados ou que já serão pagos com mais de três meses de atraso, representaram em 2023 e 2024 apenas 0,8% de todos os empréstimos concedidos a particulares, o valor mais baixo desde pelo menos 2009, segundo o Banco de Portugal.
António Brás Duarte entende ainda que há hoje uma melhor gestão do dinheiro por parte das famílias e “uma maior capacidade de investimento”, nomeadamente em imobiliário.
Vender casa é mais fácil
Apesar de estar muito difícil comprar casa, o mercado habitacional tem sido, ele próprio, parte da solução para quem está em dificuldade, considera Natália Nunes. “O mercado imobiliário tem vindo a aumentar muito o seu preço, o que acabou por funcionar muito a favor das famílias”, afirma a responsável. “Nós vimos recentemente, com o aumento da Euribor, pessoas a terem a sua prestação mais do que duplicada, mas acabaram por encontrar soluções” que não existiram na crise da Troika, “como colocarem a casa à venda e rapidamente conseguirem vendê-las”, exemplifica. “O que era um problema deixou de o ser”. Ou, pelo menos, já não é um beco sem saída: “Claro que depois têm outro problema, que é encontrar nova habitação, mas, de certa forma, elas conseguem encontrar soluções que não levam às situações de 2012 e 2013, com as famílias, em desespero, a entregarem as casas aos bancos, a avançarem para processos de insolvência”.
Banca encontra respostas
Por outro lado, “a própria banca também tem outra postura, que não teve na crise anterior”, durante o resgate financeiro, salienta Natália Nunes, “nomeadamente o de encontrar respostas”.
Nessa crise, em que o desemprego atingiu um pico de 16,5% em 2013, muitas famílias tiveram de entregar as casas para pagar as dívidas e, mesmo assim, em vários casos, sem conseguirem saldar tudo o que deviam. Como recorda António Emílio Pires, presidente da APAJ, “as pessoas começaram a fazer contas”, concluindo que seria mais fácil recorrer à insolvência pessoal — um instrumento que era pouco ativado antes do Código da Insolvência (de 2004) e que só começou a ter mais utilização com a crise da dívida europeia.
Natália Nunes lembra ainda que hoje há “outros instrumentos jurídicos que acautelam os interesses da banca e das famílias”, nomeadamente a legislação que, “de certa forma, obriga os bancos a acompanharem verdadeiramente a boa execução dos contratos”. O que significa contactarem os clientes se virem sinais de degradação, “para proporem soluções que evitem o incumprimento”.
Além disso, “as pessoas estão muito mais informadas”, constata Natália Nunes. Durante muitos anos, “as famílias que avançavam para a insolvência não tinham a noção do que importava, de quais eram as consequências de estarem neste processo”, enquanto atualmente “já não há muitos desses relatos”, observa a coordenadora da Deco. Ainda sobre literacia financeira, António Emílio Pires acredita que “as pessoas hoje estão mais esclarecidas quanto ao crédito fácil”.
Podem então as insolvências descer ainda mais? Para António Brás Duarte da OSAE, embora a situação esteja melhor, “é importante que o sistema financeiro esteja atento e evite que o crédito malparado cresça novamente”. Já Natália Nunes, confessa ter “algum receio de que estes números não continuem a descer”. Apesar de verificar que há “mais algum rendimento disponível” e vários casos de “famílias menos endividadas” — algumas das quais “que até já passaram por processos de insolvência há uns tempos” — têm também “recorrido mais a crédito”, como mostram os dados do Banco de Portugal. E ainda há que contar com “o aumento do custo de vida” e “a incógnita do peso da habitação”.
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