A ideia de que é possível mecanizar comportamentos inteligentes já tem séculos, mas só a criação de computadores digitais na segunda metade do século XX permitiu começar a concretizá-la. Apesar de alguns sucessos iniciais, o desafio de reproduzir a inteligência humana num computador veio a revelar-se muito difícil, e só na última década foi possível começar a criar ferramentas que conseguem resolver alguns problemas verdadeiramente difíceis que envolvem percepção, reconhecimento de fala e planeamento em ambientes complexos.
Nesta década, assistimos à convergência de três factores decisivos: a existência de grandes volumes de dados; o desenvolvimento de novos e mais poderosos algoritmos; e a disponibilidade de computadores com grande capacidade de processamento. A confluência destes três factores veio a criar as condições para o desenvolvimento e utilização de numerosos sistemas baseados em inteligência artificial e, em particular, em métodos de aprendizagem automática, que se vieram juntar aos métodos de procura de soluções e de planeamento de acções que foram desenvolvidos na segunda metade do século passado.
A aprendizagem automática, que permite aos computadores aprender a tomar decisões e a executar tarefas a partir de exemplos, tem sido a tecnologia da área da inteligência artificial que mais impacto tem tido na última década, em grande parte porque é aplicável numa grande variedade de domínios, mas também porque permite reduzir os custos de desenvolvimento. Tarefas tão distintas como atender chamadas telefónicas, seleccionar candidatos para uma determinada posição, responder a e-mails de clientes, determinar os produtos mais adequados a uma dada pessoa ou identificar os riscos associados a um empréstimo podem ser aprendidas a partir de exemplos, usando algoritmos de aprendizagem automática.
De facto, qualquer tarefa que seja regular e repetitiva, e para a qual existam registos passados que caracterizem o problema e a acção tomada pela pessoa que executou a tarefa pode, em princípio, ser aprendida pelos sistemas de inteligência artificial baseados em aprendizagem automática. Isso aplica-se tanto a tarefas que são executadas de uma vez só (como, por exemplo, responder a um SMS ou seleccionar um candidato a um emprego) como a tarefas que exigem acções sequenciais, como conduzir um automóvel ou interagir por telefone com um cliente.
Os métodos subjacentes aos métodos de aprendizagem automática são muitos e variados, e podem ser agrupados em diversas famílias: estatísticos, que usam métodos matemáticos para caracterizar distribuições e relações entre variáveis; simbólicos, que derivam representações simbólicas para as decisões; baseados em semelhança, que usam medidas de similaridade para classificar novas instâncias dos casos; e conexionistas, que usam modelos de neurónios artificiais inspirados no funcionamento do cérebro humano. Alguns destes métodos permitem obter descrições claras do processo de decisão que foi inferido, como por exemplos árvores de decisão ou redes de Bayes. Outros conduzem a modelos que não são facilmente compreensíveis por seres humanos, como redes neuronais, máquinas de vectores de suporte, ou florestas de decisão.
Na última década, desenvolveu-se muito a área conhecida como aprendizagem profunda (deep learning), que se baseia em modelos muito complexos, com grande número de parâmetros, eficazes nas tarefas que executam mas difíceis de compreender e validar.
Os mais recentes modelos de linguagem, como o GPT-3, que podem ser usados para gerar textos, responder a perguntas ou interagir em língua natural, foram treinados em conjuntos muito vastos de documentos e têm centenas de centenas de milhar de milhões de parâmetros, o que os torna completamente opacos e imperceptíveis. Uma área de investigação muito activa consiste, exactamente, em tornar estes modelos mais compreensíveis e auditáveis, por forma a poderem ser usados com mais segurança em áreas críticas.
As áreas de aplicação destas tecnologias são tão vastas que não é possível elencá-las todas, nem sequer de forma resumida. Apesar disso, é razoável agrupar as aplicações da inteligência artificial em duas grandes áreas: análise de dados e automação de processos.
A primeira área, análise de dados, que, em Inglês também é conhecida por muitas outras designações que incluem Analytics, Business Intelligence, Data Science e Data Mining, consiste em usar técnicas de inteligência artificial para extrair valor de dados que caracterizam pessoas, empresas, produtos e processos. Empresas como a Google, a Facebook e, em menor grau, a Apple e a Amazon, devem grande parte do seu valor à capacidade que têm de organizar os dados dos seus utilizadores e clientes, e de deles extrair valor económico. No caso da Google e da Facebook, este valor económico é extraído usando os dados acumulados para apresentar aos utilizadores anúncios personalizados, enquanto que outras empresas, como a Amazon, usam estes dados para melhorar os seus processos de venda e distribuição.
Mas esta ideia de que é possível explorar os dados para deles extrair valor económico pode de facto ser usada por todas as organizações, grandes e pequenas. Todas as empresas e organizações devem ter como objectivo ter uma visão completa e global dos seus clientes ou utilizadores, das suas preferências, comportamentos e necessidades, para melhor os servir e para os fidelizar. Da mesma forma, devem ter também a melhor visão possível de pessoas e empresas que, não sendo ainda clientes, poderão vir a sê-lo no futuro, através de operações dirigidas e eficazes.
A utilização de ferramentas e ambientes de análise de dados é essencial nos dias que correm, permitindo optimizar processos internos, detectar fraudes, optimizar o valor de cada cliente, identificar potenciais futuros clientes, evitar a perda de clientes (churn), gerir os fornecedores, aumentar o grau de satisfação dos colaboradores e minimizar o risco de operações.
A segunda grande área de aplicação da inteligência artificial, automação de processos, tem algumas relações com a análise de dados, mas tem características um pouco diferentes. Aqui, a ideia é tornar as empresas mais produtivas e eficientes, automatizando total ou parcialmente processos que exigem significativo tempo e esforço quando desempenhados por seres humanos. É possível automatizar, total ou parcialmente, praticamente qualquer função, desempenhada por um profissional, que possa ser adequadamente caracterizada, e sobre a qual se possam obter dados para treinar um sistema baseado em aprendizagem automática.
Os exemplos de aplicações possíveis são demasiado numerosos para serem explicitamente listados, mas incluem a automação de processos de introdução de dados usando RPA (robotic process automation), a selecção de candidatos a empregos, a condução de veículos, o processamento automático de documentos contabilísticos – facturas, orçamentos, etc. –, o atendimento de chamadas em call-centers, o contacto com clientes, a resposta a mensagens escritas, a análise de textos legais como contratos ou legislação, a análise de imagens médicas como Raios-X e ressonâncias, a vigilância de instalações, o diagnóstico médico, a análise de investimentos, a gestão logística de armazéns e o planeamento de rotas de distribuição, entre tantos outros.
É preciso dizer que, apesar de muitas destas tecnologias estarem suficientemente amadurecidas, existem áreas onde o desempenho dos sistemas é, ainda, bastante inferior ao de um ser humano com competências na área. Muitas vezes será necessário implementar processos de automação parcial, onde são apenas tratados os casos mais simples e deixados para profissionais os casos mais complicados. Isto é verdade tanto na área de análise de dados como na área da automação.
No entanto, mesmo a execução parcial, desde que bem sucedida, destas tarefas, permite aumentar significativamente a produtividade. Um sistema que responda automaticamente a dois terços dos pedidos de esclarecimento de clientes aumenta a produtividade das pessoas que fazem esse trabalho de um factor de três. Em muitos casos, sistemas automáticos podem executar uma fracção elevada, acima dos 90%, das tarefas, conduzindo a ganhos de produtividade ainda mais significativos. Por outro lado, as tecnologias de inteligência artificial continuam a melhorar de uma forma rápida, e muitos destes melhoramentos estarão disponíveis em futuras versões dos sistemas actuais, dentro de poucos anos.
Os investimentos que forem feitos agora para aumentar a produtividade criarão as bases tecnológicas e o conhecimento para futuros e mais profundos desenvolvimentos, sem os quais as empresas não se manterão competitivas.
Para além das áreas de aplicação, continuam a ser desenvolvidos novos métodos e algoritmos que permitam atacar problemas cada vez mais difíceis. O objectivo último é criar sistemas que reproduzam a flexibilidade e a capacidade da inteligência humana, capazes de aprender novas tarefas de uma forma rápida e eficaz, usando volumes de dados relativamente pequenos, algo que os actuais sistemas ainda não conseguem fazer. Embora ainda estejamos longe deste objectivos, a visão de longo prazo é que qualquer tarefa que possa ser desempenhada pela inteligência humana poderá também, em princípio, ser desempenhada por uma inteligência artificial.
Existem, assim, poucos limites para as aplicações futuras desta tecnologia, e todas as empresas e instituições devem analisar o potencial da mesma, e estimular a formação dos seus recursos humanos nesta área, cujo potencial transformador já foi comparado ao da electricidade ou da máquina a vapor.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
Arlindo Oliveira assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “Inteligência Artificial”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.