Na conferência de imprensa, que se seguiu à cimeira com o presidente Vladimir Putin, o presidente Joe Biden interrogou-se como é que “o mundo olharia para os EUA se estes interferissem diretamente nas eleições de outros países, e toda a gente o soubesse? Como seria se os EUA estivessem envolvidos neste tipo de atividades como ele [Putin]? Isso diminui a posição de um país que tenta desesperadamente afirmar-se como um grande poder mundial”. Esta observação de Biden escapou milagrosamente ao comentário dos analistas de política internacional nacionais. A afirmação não deixa de ser surpreendente, vinda de um político experimentado. Não foi proferida por Donald Trump.

Se existem matérias que reúnem consenso na Academia, a interferência dos EUA em processos eleitorais é uma delas, independentemente das metodologias empregues nos muitos estudos existentes sobre o assunto. Por isso, na hora de se vitimizar sobre a alegada interferência russa nas eleições americanas, Joe Biden deveria ter tido em conta o historial do seu país em matéria de interferência eleitoral noutros países, nomeadamente na Rússia. Ao não fazê-lo, as suas declarações perdem credibilidade.

Esse historial é longo e não se resume ao hemisfério ocidental. A lógica da interferência em países localizados no continente americano tem um significado diferente de quando ocorre noutros locais do globo. Intervir na América Central, impedindo que o oponente aí instale um governo hostil aos EUA, não é do ponto de vista geoestratégico o mesmo que intervir no Irão, Iraque, Palestina, ou no Afeganistão, nalguns casos em países situados no “quintal estratégico” das potências rivais. Na maior parte dos casos criando problemas ao desenvolvimento de processos democráticos nesses países.

Segundo Dov Levin, no seu livro “Meddling in the Ballot Box”, entre 1946 e 2000, tanto os EUA como a União Soviética e a Rússia envolveram-se, de forma encoberta, em 117 intervenções eleitorais noutros países, com a participação ativa dos EUA em 81 casos, ou seja, 69% do total.

A interferência nas eleições presidenciais russas de 1996, quando Boris Ieltsin procurava a reeleição e as sondagens lhe atribuíam apenas 6% das intenções de votos será, porventura, um dos casos mais conhecidos, estudados e documentados.

Foi quando veio ao de cima o “altruísmo paternalista” do então presidente Bill Clinton: “quero tanto ajudar este tipo a ganhar”.  Aí a Administração americana entrou em ação, pressionando o FMI para atribuir à Rússia um empréstimo de 10 mil milhões de dólares, alguma parte dessa maquia utilizada para captar eleitores, um pouco à semelhança das técnicas empregues por alguns autarcas nacionais. Como se isso não bastasse, Bill Clinton disponibilizou três conselheiros políticos, um deles Richard Dresner, um seu antigo compagnon de route das batalhas eleitorais no Arkansas, para ajudar Ieltsin na árdua campanha da reeleição.

O facto de o consenso apontar os EUA como o líder da interferência eleitoral, não significa que nem a URSS nem a sua sucessora tenham sido ou sejam abstémicas em matéria de interferência eleitoral em países terceiros. O que está em causa não é saber quem se intromete mais nos assuntos internos dos outros estados, mas a reação enviesada e acrítica das elites políticas e fazedores de opinião das potências subordinadas.