Portugal tem um problema histórico que tem subsistido ano após ano, década após década, relacionado com a resistência do cidadão comum em reportar potenciais irregularidades, sejam elas relacionadas com violações éticas, com a prática de atos fraudulentos e de corrupção, com violações legais de determinada regulamentação e legislação vigente nos diferentes setores de atividade.

E porquê? Culturalmente, existe uma conotação negativa relacionada com o ato de denunciar (mesmo algo de incorreto ou de irregular, devendo-se ao facto de que, para a maioria de nós, tendo presenciado ou crescido com os nossos pais e avós que viveram num regime ditatorial em Portugal, um indivíduo que denuncia algo é um bufo ou um “queixinhas”. Mesmo inconscientemente, acabamos por absorver e enraizar na nossa forma de estar essa conotação negativa associada à denúncia, tendo em conta que os princípios e o propósito das denúncias ocorridas durante o Estado Novo eram tipicamente maliciosos.

Mas existe outra cultura que tem resistido à mudança dos tempos para além da social: a organizacional, que muitas vezes apelido como a cultura do “tick in the box”.

Embora observemos ao longo dos últimos anos uma evolução lenta, mas ainda assim crescente, na importância que as organizações têm dado à implementação de mecanismos de reporte de irregularidades, ainda existe um longo caminho a percorrer. Por um lado, devido ao facto deste tema ser colocado como uma das últimas prioridades nas organizações, por outro, devido às empresas estruturarem deficientemente estes mecanismos, com o objetivo único de colocar um “tick in the box”.

É de extrema relevância que as organizações públicas e privadas entendam que os canais de denúncias e de reporte de irregularidades são ferramentas poderosas, não só para promover um ambiente ético e saudável entre colaboradores, como também na prevenção e combate a eventos fraudulentos e violações legais, que muitas vezes têm consequências significativas aos níveis financeiro e reputacional.

São os acionistas e gestores que devem estar na linha da frente no incentivo à implementação destes canais, ao dar ao denunciante a opção para relatar eventos suspeitos por escrito ou verbalmente, identificando-se ou optando pelo anonimato, e ao garantir os princípios fundamentais da independência, confidencialidade e não retaliação, aquando a receção, tratamento e resolução das denúncias recebidas.

A comunicação sobre o âmbito, funcionamento e processo de análise de denúncias deve ser clara e transparente, não só para colaboradores, como também para clientes, fornecedores e outros stakeholders. A sensibilização dada aos colaboradores sobre estes temas deve ser pontual, mas com uma periodicidade definida. Só desta forma se conseguirá dar a confiança necessária a que potenciais denunciantes se sintam à vontade para reportar situações irregulares, e se consiga assim extrair o máximo de eficácia e potencial destes canais. Caso contrário, existe o risco elevado destes serem utilizados com uma recorrência residual.

Da parte de quem denuncia, deverá existir uma consciência sobre a relevância do seu ato ao relatar determinada irregularidade, seguindo sempre um princípio de boa fé sobre a utilização adequada que deve ser dada a estes canais.

Por último, deverá propagar-se o senso comum de que, até que comprovadas, as denúncias não passam de suspeitas, e de que uma eventual investigação não é sinónimo de condenação, devendo-se salvaguardar o princípio da confidencialidade ao longo do processo de investigação. Só após apreendermos estes princípios é que estaremos em condições de viver numa comunidade que aceite como naturais o fenómeno do reporte de irregularidades e os respetivos processos de investigação.

Para além de já termos legislação nacional específica que obriga as instituições financeiras a implementar canais de denúncias, à qual se junta mais recentemente a estratégia nacional de combate à corrupção (aplicável a todas as entidades), o Parlamento Europeu veio dar força a este tema nos países membros da União Europeia através da Diretiva (UE) 2019/1937, na qual estabelece medidas de proteção aos denunciantes e obriga a que a generalidade das entidades públicas e privadas, com pelo menos 50 colaboradores, implementem canais de denúncias.

Estima-se que o prazo de transposição desta diretiva a nível nacional se faça até ao final deste ano, pelo que se recomenda que as entidades públicas e privadas se mantenham atentas sobre este tema e procedam à implementação eficaz deste tipo de instrumentos de reporte.

Façamos desta inversão cultural obrigatória a nossa melhor versão tão necessária!