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Isabel do Carmo: “A luta armada já não faz sentido. Nem na Catalunha”

‘Luta Armada’ é o novo livro de Isabel do Carmo, médica e fundadora das Brigadas Revolucionárias. Pretende ser uma forma de não permitir que a história seja reescrita sem o contributo de todos os que a fizeram acontecer.
4 Novembro 2017, 09h30

Ciente de que o tempo da luta armada já não é este, Isabel do Carmo faz uma viagem pela Europa do final do século passado, numa altura em que alguns países, nomeadamente os mais desenvolvidos, passaram pelo convívio com grupos de guerrilha urbana. É uma parte da história da Europa que quase não tem voz – como se nunca tivesse existido – e a pouca que tem está entrincheirada num canto de desinformação e desconhecimento. Nesta fase em que a democracia formal parece estar a chegar ao fim da sua própria história e os grupos ‘ilegacionistas’ ganham adeptos e implicam diretamente no desenrolar da vida política do continente, conhecer-lhes os antecedentes é uma ‘obrigação’. Uma obra cheia de surpresas e de revelações inesperadas, apresentada, possivelmente por mera coincidência, no dia em que passam 47 anos sobre a data em que a ARA, uma organização criada pelo PCP como se fosse uma espécie de obrigação dos tempos que corriam, efetuou a sua primeira ação: o ataque ao Cunene, um navio ao serviço da guerra colonial – que foi uma das principais causas do surgimento dos grupos armados em Portugal.

O livro que acaba de editar parece ser uma catarse pessoal e uma forma de impedir que alguém reescreva a história.
Catarse é capaz de ser demasiado forte. Decorre da necessidade de expor o que se passou naqueles anos em que três organizações tiveram ações armadas. De expor na primeira pessoa, visto que eu integrava uma das organizações, e portanto conhecia e sabia coisas. Por outro lado, as versões diferentes são o que tem acontecido sempre. A narrativa oficial, no caso das mais benévolas, omite simplesmente as ações armadas: deixaram de fazer parte da história da queda da ditadura, quando elas assumiram uma parte importante porque enfraqueceram e desorientaram o regime.

Qual é a sua explicação para isso?
Porque é sempre mais interessante falar das superestruturas políticas, das direções partidárias, dos personagens das direções partidárias, e as ações armadas têm uma carga, uma conotação. A outra parte da narrativa é atribuírem-nos mortes que não existiram. As únicas mortes que houve com as Brigadas foram dois militantes nossos que morreram por um erro de colocação de engenhos explosivos. De resto, não houve qualquer morte e isso tem de ser repetido, tem de ser dito muitas vezes.

Porque é que os historiadores – e há muitos historiadores de esquerda, Fernando Rosas e de alguma forma Pacheco Pereira, que tem escrito muito sobre a esquerda – nunca pegaram no assunto da luta armada de forma sistemática?
Com o Fernando Rosas, tivemos um projeto – antes da vinda da troika – com o Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, que tem um arquivo de documentação único, em associação com o Instituto de História Social de Amsterdão, mas foi rejeitado, quanto a nós por razões que não eram válidas.

Possivelmente políticas.
Claro. Era ideia do Fernando Rosas fazer um trabalho importante de historiografia contemporânea. Implicava um trabalho académico profundo. É uma área um pouco perdida, mas espero que o livro faça com haja mais coisas.

Uma das áreas mais difíceis dessa investigação seria por certo a que está ligada ao PCP. É claro que a ARA era uma organização do PCP, mas o partido comporta-se como se essa ligação nunca tivesse existido.
Exato. Isso está de acordo com o que é o PCP. Esteve sempre com um pé cá e outro lá. Não tenhamos ilusões. E ao contrário do que a direita sempre disse, a União Soviética nunca esteve interessada em revoluções fora dos países que a rodeavam. A orientação que havia através do Comintern e do Cominform era de que estavam contra a revolução nestes países.

A guerra civil espanhola (1936/39) é disso um exemplo.
Sim. A dada altura há um recuo porque Estaline estava para fazer um acordo com a Alemanha, um acordo infame. É preciso dizê-lo: a insurreição nestes países não estava nos planos da União Soviética. E, portanto, o PCP esconde isso – apesar de toda a heroicidade da sua história. Por vezes ia avançar para as ações armadas, mas depois recuava, quando havia ações dos outros criticava… toda a história do PCP foi assim. Quando cria a ARA, os seus fundadores estavam sinceramente apostados nas ações armadas e assim o fizeram, mas arrastaram muito o seu início, que acabou por ser uma necessidade de resposta aos seus militantes e à constituição das BR, e acabou tudo em 1973.

E a partir de 1974 há um enorme estigma sobre o assunto.
Claro. O que se fala no PCP são os anos de cadeia, a resistência, as fugas, mas fala-se muito pouco da ARA.

Falou de Espanha – necessariamente recorda-se a Catalunha. Pergunto-lhe: ainda faz sentido que a luta armada seja uma hipótese em aberto?
Não, acho que não. Atualmente, mesmo para as organizações mais revolucionárias, a luta armada como decorreu nos anos 60 e 70 e até ao final do século de uma forma mais desvanecida, deixou de fazer sentido. Por um lado porque o poder capitalista é neste momento global, não tem um centro – não é possível com armas, localmente, combater esse poder com o recurso a métodos que no passado foram eficazes, como em Portugal. Esses métodos já não fazem qualquer sentido.

Há uma diferença evidente entre as três organizações que lutaram em Portugal e algumas congéneres europeias: a RAF alemã (mais conhecida por Baader-Meinhof) ou as Brigadas Vermelhas italianas organizaram atentados pessoais de que resultou a morte dos visados. Porquê esta diferença?
Qualquer das três organizações portuguesas assumiu desde o início que não mataria pessoas. É uma questão filosófica: sou contra a pena de morte. No entanto, mesmo em relação aos grupos europeus, há algumas questões que têm de ser colocadas. No início, não era essa a opção. Houve as primeiras mortes provocadas pela polícia, depois a prisão dos dirigentes – e é depois disso que a ala mais radical, mais pró-execuções vem ao de cima. E em qualquer dos casos há ainda a questão das infiltrações. Ainda não sabemos tudo, principalmente em Itália e em relação ao Aldo Moro [executado pelas Brigadas Vermelhas em 1978].

Está a falar das lojas maçónicas, nomeadamente a P2, insuspeita de ser de esquerda?
Exatamente.

Nas BR a opção das penas de morte ou execuções nunca foi considerada?
Houve discussões internas a esse respeito, mas isoladas e pontuais.

Voltando à questão da oportunidade da luta armada: numa circunstância em que a democracia tal como é concebida no Ocidente a partir da Revolução Francesa está a desaparecer, e proliferando alguns grupos mais violentos (como o Black Bloc e outros, que têm tentado bloquear as cimeiras do G7) acha mesmo assim que não há espaço para uma solução mais violenta?
São outras formas de luta, a que chamo ilegalismo: ocupação de praças e de outros sítios, com alguns atos que se podem considerar violentos, como seja pegar fogo a pneus para impedir a circulação, mas nada disso pode ser chamado de luta armada. De qualquer modo, a democracia parece estar cada vez mais vazia e não mandar nada, mas há outras expressões que estão a aparecer: associações, círculos de pessoas que se organizam, que estão a funcionar. As pessoas organizam-se – como em Pedrógão, por exemplo – e isso é democracia. Mas a democracia formal de facto não está a dar resposta. Vivemos num momento de interrogação.

Do seu ponto de vista, qual é a resposta a essa interrogação?
Vou muito por essas formas de organização de base. As grandes mudanças não ocorrem num momento: vão ocorrendo.

Alguém chamou a isso o comunismo primitivo. É para aí que vamos?
Oxalá que sim, e é curioso que também estamos a assistir ao ressurgir do cristianismo primitivo. Aposto em que as organizações de base, a organização de pessoas entre si, por objetivos, são coisas que vão larvando.

Acha que, por exemplo, na Catalunha a esquerda radical vai resistir a enveredar por ações que não diria de luta armada, mas mais violentas?
Eu não queria estar na pele deles. É uma situação muito difícil: a esquerda radical à volta do Podemos e da câmara de Barcelona nunca teve a independência nos seus objetivos, e agora cai-lhes nos braços esta situação. Não podem ir contra aquilo que foi o movimento popular, mas têm que fazer a análise política. O Kosovo foi muito bom, a Ucrânia foi ótimo e depois a Catalunha já não é… A esquerda tem de fazer essa análise e também tem de estar contra a forma como Madrid lidou com este problema. Essa esquerda, julgo eu, não vai recorrer a ações violentas. Mas haverá certamente jovens que não pedem licença a ninguém para cometer ações violentas contra alvos mais acessíveis do poder central.

Acha que o Podemos e de algum modo também o Bloco de Esquerda resolveram a questão da doença infantil do comunismo?
[risos] Acho que o Bloco fez uma evolução que lhe retirou aquele caráter, em termos de figurino, estalinista, muito sectário e fanático, o que foi ótimo.

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