A socialista Isabel Moreira considera “um péssimo sinal” e “um erro crasso” que a primeira proposta da Iniciativa Liberal para a legislatura que ainda não arrancou seja um projeto de revisão constitucional que, além de “despropositada” por não resolver nenhum dos problemas do país, “é perigoso” para a democracia num quadro político que mudou radicalmente.
“Acho mesmo avisado que aqueles que estão preocupados com a democracia – e eu acredito que a Iniciativa Liberal é um desses partidos – deem um passo atrás, respirem e pensem nisto: o que é que os portugueses esperam dos partidos que seguram a democracia neste momento? Esperam que olhem para eles, para os portugueses e não portugueses que vivem em Portugal, para os problemas que vão desde a saúde à habitação, ao emprego e aos salários”, começou por dizer a deputada do PS, argumentando que nenhum dos “anseios” da população tem como resposta a revisão da Lei Fundamental.
Seria, por isso, incompreensível que o Parlamento dedicasse um ano ou dois a um assunto “que não responde aos problemas de ninguém”, sobretudo numa altura em que “as circunstâncias internacionais imprevisíveis obrigam a um esforço muito sério relativamente às respostas que temos de dar. É de um divórcio violentíssimo com a realidade”.
Neste quadro, avançar para uma revisão da Constituição é “francamente despropositado, divorciado da realidade dos problemas dos portugueses e perigoso”, frisa a socialista. “A partir do momento em que, pela primeira vez na história da democracia, é possível fazer uma revisão constitucional, entre o PSD, o Chega e a Iniciativa Liberal, é evidente que a democracia está em risco”, alerta também.
Isabel Moreira comentava assim o anúncio feito por Rui Rocha, presidente da IL, de que é intenção do partido avançar com um projeto de revisão da Constituição com o objetivo de lhe retirar “pendor ideológico” e reduzir o peso do Estado na economia. Uma intenção que não é nova, coincide com as propostas apresentadas pelos liberais noutras legislaturas, e é também um dos temas presentes no programa com que foram a votos no último domingo.
A deputada do PS defende, porém, que os liberais têm uma “visão enviesada” do texto fundamental que, sustenta, “não tem amarras ideológicas”. “A Constituição que temos é aberta, moderna, foi revista variadíssimas vezes, permite há muitos anos políticas tanto de direita como de esquerda. É uma Constituição que não tem qualquer travão, nenhum fantasma, que impeça políticas mais neoliberais ou políticas mais à esquerda ou políticas mais de centro”, aponta Isabel Moreira, recordando que o país, por exemplo, já viveu períodos de fortes privatizações e não foi a Lei Fundamental que o impediu.
“Não há nada na Constituição que impeça uma política mais de centro, mais de esquerda, mais à direita (…) A Constituição não tem um programa de governo”, reforça a também advogada, procurando desmontar a leitura que é feita pelos liberais. A Lei Fundamental “tem coisas essenciais que foram conquistas coletivas”, que têm de ser asseguradas, como é o caso do Serviço Nacional de Saúde e da escola pública. Isso não impede que as pessoas tenham seguros privados e que recorram a um hospital privado ou que ponham os filhos num colégio privado”, exemplifica.
Discordando em absoluto de uma revisão constitucional, como discordou das tentativas anteriores, Isabel Moreira sublinha que, se esse “erro” for iniciado pelos partidos de direita, “caberá ao PS fazer tudo o que está nas suas mãos para que a democracia não saia desvirtuada desse processo desnecessário” porque, avisa, “por vezes começa-se com uma coisa pequena, mas depois pode estar em causa, por exemplo, “alterar os limites das penas ou qualquer coisa no nosso sistema judicial que pode parecer que não tem assim grande impacto”, podendo avizinhar-se uma “política dos pequenos passos até ao desvirtuamento do sistema democrático”. “Não estou apenas a falar do Estado social, estou a falar de direitos fundamentais, estou a falar da arquitetura do sistema judicial, estou a falar da arquitetura daquilo que é a nossa trave mestra constitucional em matéria penal”, concretiza.
E assim sendo, se se avançar para uma revisão constitucional, “com três partidos que começam a ceder entre si”, o PS, com a força que não é a que tinha antes das legislativas de domingo, “tem a responsabilidade de trazer o máximo possível o PSD e a IL para o lado da democracia”.
O que quer a direita mudar na Constituição?
Nas últimas legislaturas, o Chega avançou com propostas de revisão da Constituição, a última das quais pretendia que fosse cirúrgica e que reduzisse o número de deputados da Assembleia da República de 230 para 150.
No processo anterior, desencadeado por André Ventura, os restantes partidos tiveram de ir a jogo com as suas propostas, mas aquela que seria a oitava revisão da Lei Fundamental acabaria por cair por terra com a dissolução do governo de António Costa. O PSD, por exemplo, também propunha a redução do número de parlamentares (entre 181 e 215). Na altura, Chega e IL foram as únicas forças a pretender reescrever o preâmbulo da Constituição, retirando a referência à abertura de um caminho “para uma sociedade socialista”. O Chega pretendia também eliminar “referências ao período fascista”.
No programa eleitoral deste ano, a Iniciativa Liberal escreve que a Constituição da República Portuguesa, redigida em 1976, “precisa de ser melhorada, simplificada e trazida para a modernidade”.
“A Iniciativa Liberal considera que há muito para fazer na lei fundamental para que esta fique conforme a uma democracia liberal própria de um Estado que coloca a pessoa no centro das suas preocupações. É fundamental reformar a Constituição, para devolver poder às pessoas, aprofundar direitos, liberdades e garantias, assegurar mais justiça para as gerações futuras, sem cedências a pulsões securitárias ou excessos sanitários e recusando dogmas pós-revolucionários totalmente datados”, pode ler-se.
Esta quarta-feira, Rui Rocha garantiu que o objetivo da IL não é um “ajuste de contas com a História”, mas sim “a criação de uma oportunidade de futuro para todos, em que todos se reveem numa Constituição que traz mais liberdade e que tem menor pendor ideológico” e disse contar com o voto de todos aqueles que se reveem na sua visão.
O Chega, que já disse estar disponível para mexer na Constituição se se formar uma frente de direita para tal, também manteve no seu programa eleitoral a intenção de emendar a Lei Fundamental do país, propondo, por exemplo, “clarificar que o texto é conforme com a pena de prisão perpétua ou a sanção acessória de tratamento para inibição da libido”, “defender a complementaridade dos setores público, social e privado no âmbito da saúde e do ensino, assim como reconhecer à família o seu papel central na educação dos filhos” ou ainda “limitar o número de ministérios a doze, numa lógica de contenção orçamental e de reforço da eficácia governativa, assegurando uma gestão prudente e eficiente dos recursos do Estado”, entre outras propostas.
Já o PSD, que pela voz de Luís Montenegro não quis comentar o cenário de uma “hipotética” revisão constitucional quando questionado sobre o tema na noite eleitoral, assinalou no programa que sufragou no domingo que a “sociedade deve refletir sobre a revisão da nossa lei maior, preparando as bases do texto fundamental para os desafios do século XXI, colocando a pessoa e a dignidade humana no centro das políticas públicas, valorizando as autonomias e promovendo a coesão territorial e geracional e eliminando conteúdo ideológico ultrapassado pelo tempo”.
Um processo que, pode ler-se, “deve ser ponderado, não pode ser precipitado e gerar o consenso necessário à evolução tranquila que expresse os valores e princípios da sociedade portuguesa”.
“Promover o debate público sobre a proposta de redução da idade legal para o exercício do direito de voto para os 16 anos”; “rever o modelo de governação dos municípios no respeito pela participação democrática e dos cidadãos na gestão dos assuntos de interesse local” e “reforçar as autonomias regionais, logo que possível, em sede de revisão constitucional” são alguns dos objetivos da coligação PSD/CDS.
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