Morreu a 11 de Junho, Isaura, enfermeira, antifascista e comunista. Foi pouco o que se leu, menos o que se ouviu e zero o que se viu. Os principais órgãos de comunicação, televisões, canais públicos por exemplo, passaram ao lado. E não podiam ter passado.

Esse silêncio, neste tempo prenhe de fascismos, assusta. Esse silêncio não devia ter esquecido o teu rosto sereno mas fechado, os teus olhos que ainda hoje tanto nos querem contar na fotografia da ficha da PIDE. Esse silêncio não foi sequer quebrado por um grito da classe que devia olhar para ti como uma heroína. Não é possível que se esqueça a tua luta, na defesa das enfermeiras. Não chegou a voz comovida que se ouviu na cerimónia fúnebre e pouco mais(1).

Isaura entra nos Hospitais Civis de Lisboa em 1952. Torna-se uma activista das lutas das enfermeiras por melhores condições de trabalho (os longos horários, os escassos dias de folga, as velas contínuas, a má alimentação e as degradadas condições das casernas que as albergavam). Encabeça a luta pelo direito ao casamento das enfermeiras, despedidas do Hospital Júlio de Matos por terem infringido essa humilhante proibição.

“Nós não tínhamos tido até à data nenhum contacto político, mas não era preciso isso para que toda a classe se revoltasse contra o facto. Recolhemos assinaturas para um documento dirigido a Salazar e ao Cardeal Patriarca, como protesto contra semelhante lei que punha as enfermeiras num lugar à parte. Eu trabalhava no Hospital dos Capuchos, onde conseguimos recolher setecentas assinaturas do pessoal. Foi por essa altura que conheci o meu marido que era do MUD. Ele convidou-me, e eu tornei-me aderente do MUD, em 1953. Por essa altura havia eleições para deputados, e dirigi-me pela primeira vez à sede do MUD para o visitar. A Pide estava lá e prendeu muito simplesmente vinte jovens.”

“Quando um deles me viu e me reconheceu, das minhas andanças na recolha das assinaturas contra a proibição do casamento das enfermeiras, exclamou: – Ora cá está a casamenteira”(2). Seguiu-se a rotina da repressão fascista. Prisão, Caxias, interrogatórios, violência e humilhação, tortura e agressões (até ao advogado de defesa), julgamento, ‘dois anos de prisão maior’, medidas de segurança, isolamentos, doença, castigos prisionais, incluindo o regime de pão e água, e tudo o que mais não se conta por ser verdade. Libertada condicionalmente e com residência fixa, ao fim de quatro anos de prisão. Casa com António Borges Coelho, preso em Peniche. “Inauguramos os dois os casamentos de presos em Peniche”.

Olho para os teus olhos, olho para o teu rosto e vejo, Isaura, esses anos de ignomínia, de brutalidade, de medos e coragens. Vejo a firmeza e a dignidade com que enfrentaste os esbirros. Vejo a enormidade e desproporção do que te fizeram, mesmo na mascarada das “leis” da absoluta arbitrariedade com que os eunucos do regime e o ditador se cobriam. E que permitiam toda a cumplicidade da social-democracia e democracia-cristã, dos regimes da “Europa civilizada”, do “Ocidente”. Vejo a tua absoluta incredulidade ao ouvir a sentença: “Não acreditei. Aquilo é comigo? – Perguntei eu ao meu advogado”.

Não deixemos este silêncio tomar conta de nós. Não precisamos de perguntar se este silêncio é connosco. Abril diz-nos que sim.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

(1) O SEP assinalou a morte no seu sítio electrónico e por presença na Assembleia da República, quando do Voto de Pesar proposto pelo PCP;

(2) Do depoimento de Isaura, in “Mulheres Portuguesas na Resistência”, Rose Nery Nobre, Seara Nova, 1975.