Fomos surpreendidos recentemente com a notícia sobre a legalização das criptomoedas como suporte às transacções imobiliárias em Portugal, e ainda mais com a primeira transacção realizada no passado 5 de Maio sob os auspícios do gabinete de advogados Antas da Cunha & Associados e da imobiliária ZOME. Até parece que as criptos passaram, de repente, a ser consideradas massa monetária nestas transacções. Será que esta notícia significa que estamos no caminho de poder fazer o mesmo com outros bens, como por exemplo comprar o jornal em criptomoeda?

Já aqui defendi que as criptomoedas vieram para ficar, pois são elas que dão corpo aos serviços do ecossistema que suportam. Também referi no mesmo ensaio que esses serviços fornecidos pela Blockchain sob a forma de Smart Contracts são monopólios com a característica de também serem bens públicos quando a sua disponibilidade transaccional lhes permite usufruir de custos marginais quasi-nulos.

Quer tudo isto dizer que a utilidade pública da Blockchain é inquestionável, e que a sua utilização vai sempre passar por uma criptomoeda, tal como aqui exemplifiquei com o exemplo da saudosa Feira Popular em Lisboa. Porém, para além de um meio de pagamento no contexto do seu ecossistema, uma criptomoeda também pode ser uma reserva de valor, mas sempre dentro das fronteiras impostas pela Blockchain subjacente. Ora, essas fronteiras só podem ser cruzadas através de operações cambiais com outras criptomoedas, ou mesmo com moeda fiduciária, as quais têm lugar nos Exchanges.

Tudo estava na paz dos anjos até aparecerem exemplos de criptos associados aos ecossistemas do nosso dia-a-dia, sendo particularmente interessante este exemplo no imobiliário. É que se uma criptomoeda só vale no contexto do seu ecossistema, e os bens imobiliários são transaccionados legalmente em moeda fiduciária na economia tradicional, então o que é que se passou para que tenha tido lugar esta notícia sobre as instruções dadas aos notários para que se possam executar escrituras de compra e venda de imóveis em criptomoeda?

Será que as criptomoedas viram agora ser alargadas as fronteiras dos seus ecossistemas, começando assim a abarcar activos reais? Com o título da notícia a referir que as “casas já podem ser compradas com criptomoedas”, as criptos deveriam passar a ser, no mínimo, um meio de pagamento. Porém, se assim fosse, a escritura teria de ser registada na criptomoeda utilizada na transacção, quando a lei actual obriga a que seja em euros. Além disso, a notícia não refere nenhuma alteração na lei, e a primeira transacção já referida também foi efectivamente valorizada em euros.

Como a lei tem excluído a utilização das criptomoedas como meio de pagamento, o que tem acontecido até hoje com os detentores das mesmas, e que desejam ter liquidez para transaccionar activos na economia tradicional, é o seguinte: o comprador começa por trocar a sua cripto num Exchanges, e executa a transacção em euros, ficando na mão do vendedor voltar ao Exchange para trocar os euros de volta em cripto, se assim o desejar. No entanto, tal não foi o que aconteceu com nesta transacção imobiliária.

Na verdade, o que agora foi autorizado em Portugal para o acto notarial em causa é uma permuta de reservas de valor, a saber: o comprador troca com o vendedor a reserva de valor que possui (na forma de criptomoeda) pelo direito ao imóvel. Evita-se assim a necessidade de ir ao Exchange duas vezes e pagar as respectivas taxas, aumentando assim enormemente a liquidez e a conveniência da criptomoeda em causa para este tipo de transacções.

Mas a transacção não deixa de ser registada em euros, os impostos pagos em euros, e a valorização ou desvalorização do imóvel também vai continuar a seguir a evolução do valor da massa monetária em vigor no nosso espaço geopolítico, o euro, pois, para já, a legislação não permite o registo de qualquer transacção em qualquer criptomoeda que não seja o futuro Eurodigital.

Portanto, apesar da notícia, as criptomoedas continuam a ser apenas uma reserva de valor. Ainda assim, as duas notícias referidas não deixam de representar importantes passos no sentido de facilitar a aplicabilidade económica das criptomoedas, trazendo imensas vantagens para Portugal, não só porque vai atrair ainda mais empreendedores (e precisamos tanto deles!) como também abrir caminho ao provisionamento da nossa economia com criptoactivos.

Podemos estender esta lógica a outros sectores? Claro que podemos, mas duvido que os donos dos quiosques estejam dispostos a dar esse passo sem que a transacção seja tão conveniente quanto a leitura de um QR Code numa Wallet, como já acontece na China. Talvez tal venha a acontecer por cá se o PSD2 vier a ser de facto implementado pela generalidade dos comerciantes, ou se exemplos como o Paypal ou a Utrust vierem a adicionar a liquidez em tempo real aos Exchanges que dão vida à convivência das criptomoedas com as moedas fiduciárias.

Assim, apesar de ainda não ser desta que vamos poder passar a comprar a versão em papel do Jornal Económico em criptomoeda, a pergunta a fazer é: que futuro para a nossa economia, agora que está aprovada a utilização directa das criptomoedas em transacções com activos sujeitos a registo?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.