“Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira” – José Saramago

Numa altura em que a propaganda atinente à Covid-19 se tornou a principal arma de silenciamento dos que, não negligenciando a respectiva gravidade, pugnam pelo respeito pelos mais basilares direitos fundamentais, é também a situação de pandemia que tem servido de justificação para uma onda gigante de despedimentos, cujos custos sociais nos serão apresentados a pagamento.

Nesta jangada, cada vez mais de alcatrão e de pedra mas à deriva, em que Portugal se tornou, somos instados a estar uns contra os outros, colocando-se, por exemplo e entre muitos outros, os trabalhadores da TAP no pelourinho, como se tivessem a culpa do estado de uma empresa que mais não fez do que enriquecer os accionistas privados.

Vivemos durante décadas habituados a encontrar bodes expiatórios, que agora nos limitamos a expor no esgoto a céu aberto em que as redes sociais também se tornaram. Uma vez encontrado o objecto de ódio de cada momento, bastamo-nos com uns posts, seguindo para o próximo, assim que a fúria passa. Nuns casos acertamos, noutros nem por isso, mas saímos cada um de nós com a certeza de que fizemos tudo o que nos competia pelo País, nem que isso se limite a um ridículo gosto numas linhas alheias.

Somos os país do Fado mas o nosso é o de sermos sempre poucos ambiciosos e gastarmos a vida na maledicência.

Entretanto, passam-nos milhões ao lado, os quais poderiam servir para reequilibrar a economia e para potenciar postos de trabalho. Por exemplo, é fácil hoje bater em Joe Berardo. Quantos o fizeram quando se fazia anunciar como comendador (estatuto que ainda mantém…) e pese embora já fosse claro que o dinheiro não costuma cair das árvores? Temos a tendência para nos revoltar contra o que já está em vias da solução possível e deixar escapar aquilo que podia ser efectivamente resolvido.

De corrupçãozinha em corrupçãozinha, o que motiva os nossos dirigentes políticos a avançar não é uma economia sólida mas a promessa de mais uns golpes privados, cuja factura nos virá depois, acompanhada de uma qualquer campanha mediática contra os seus autores, quando já estiverem retirados na respectiva mansão na Comporta ou na respectiva quinta. Podemos continuar a expressar revolta depois de conhecidos os termos mas o que importa, na realidade, é a prevenção. Impedir que esta realidade se perpetue ad nauseam enquanto nos reservamos apenas o direito à indignação quando é demasiado tarde.

Mudar o paradigma, o deles e o nosso, não pode ser apenas um objectivo. É, neste momento, a única amarra que pode parar esta deriva de uma profundíssima crise de valores, a que se segue uma idêntica crise financeira.

Como dizia Saramago, pode demorar uma vida. O que importa é que, ao contrário do que dizia Don Fabrício de Salinas, as coisas não mudem para ficar tudo na mesma.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.