A vandalização da estátua do padre António Vieira está longe de constituir um caso isolado. Na verdade, insere-se na campanha que grassa desde há alguns anos e que fez do colonialismo europeu o seu alvo. Uma estratégia apostada em apagar todo o ativo decorrente da expansão europeia e em colocar a tónica apenas no passivo. Daí o enfoque na escravatura. Por isso a denúncia da pilhagem de recursos naturais. A forma de responsabilizar o extinto Império Euromundista pelo atraso em que grande parte dos países do Sul continuam mergulhados, pese embora as avultadas verbas que a cooperação com origem no Norte lhes tem disponibilizado.
Uma campanha que procura rentabilizar ao máximo qualquer acontecimento passível de aproveitamento. No caso presente, a morte de um afro-americano sufocado por um polícia serviu de rastilho. A vítima foi imediatamente identificada com os oprimidos – atuais e passados – do colonialismo e do racismo e o polícia com o Norte agressor dos tempos modernos.
Que o Norte, designadamente o Ocidente, tenha sido o autor das principais cartas dos direitos humanos – a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – é assunto que não interessa aos autores dos atos de vandalismo. Gente que ignora ou finge desconhecer que o padre António Vieira foi alguém que, tal como o Bispo de Chiapas, Bartolomé de Las Casas, denunciou as atrocidades cometidas pelos colonizadores que não mostravam a mínima consideração pelos indígenas americanos.
Em Espanha, Bartolomé de Las Casas conseguiu que o Imperador mandasse convocar a Controvérsia de Valhadolid para debater a questão. Em Portugal e no Brasil, os sermões de António Vieira e as cartas que escrevia ao rei não calavam a repulsa pelos abusos de responsabilidade portuguesa. Atrocidades frequentes e, por isso, numa das cartas Vieira pediu desculpa ao rei por se alongar nas queixas, mas não tinha encontrado maneira de ser mais breve.
Vieira e Bartolomé ousaram denunciar os crimes no momento em que estavam a ser cometidos. Algo que não faz parte da agenda daqueles que se mostram apenas interessados em acertar contas com a sua visão da História. Para estes justiceiros modernos não parece importar que muitos dos seus concidadãos ainda permaneçam numa situação de escravatura.
Na realidade, quantos daqueles que vandalizam os símbolos – reais e pretensos – do colonialismo leram os relatórios sobre os escravos modernos? Quantos deles sabem que, de acordo com o Índice Global de Escravatura, elaborado pela Walk Free Foundation, em 2016, as estimativas apontavam para a existência de 40,3 milhões de escravos modernos, sendo que 24,9 milhões eram obrigados a trabalho forçado e 15,4 milhões tinham sido obrigados a casamentos não desejados?
Como os dez países onde a escravatura moderna atinge o valor mais elevado são, por ordem decrescente, a Coreia do Norte, a Eritreia, o Burundi, a República Centro Africana, o Afeganistão, a Mauritânia, o Paquistão, o Camboja e o Irão, não se torna fácil culpar o Ocidente. Só que, voltando à vandalização dos símbolos, a luta contra o colonialismo, a escravatura, o racismo e a xenofobia sabe ser seletiva.
É por isso que voltando ao título, embora reconhecendo a enorme distância que separa a minha pobre escrita dos dons oratórios e da capacidade argumentativa de Vieira (e Las Casas), ouso identificar-me com a sua luta e os seus princípios.