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José Ranito: “Investigação a fraude global no IVA, iniciada em Portugal, atinge três mil milhões de euros”

Procurador europeu de Portugal revela que investigação a megafraude ao IVA , que começou por suspeitas da AT em Coimbra, já soma três mil milhões . Envolvendo nove mil empresas noutros países, a operação ‘Admiral’, que já levou a condenações no nosso país, desvendou “uma das maiores fraudes em IVA intracomunitário alguma vez investigadas na UE”.
3 Outubro 2025, 07h25

Está preocupado com a forma como estão a ser utilizados os fundos comunitários em Portugal?
Como procurador europeu que monitoriza investigações criminais instauradas nos 24 Estados participantes na Procuradoria Europeia, posso dizer que há países cujas autoridades estão a reportar-nos mais casos do que sucede com Portugal. Há países em que são reportados mais crimes, caso de Itália ou da Roménia, mas isso não significa que estes sejam os países mais comprometidos com a fraude. Na verdade, nesses e noutros países, existem sistemas de deteção que estão a funcionar, com análise cruzada de bases de dados que permitem a parametrização de risco (de fraude e corrupção), ações de controlo e uma resposta eficaz, designadamente a criminal.

E quais são os números?
Em 2024, na Bulgária, estavam em investigação 246 infrações relacionadas com fraude em subsídio, contratação pública e corrupção, em Itália 983, na Roménia 722. Em Portugal 54.
Para nós a deteção antecipada de realidades fraudulentas é crucial. Um combate criminal eficaz baseado nessa abordagem permite-nos acionar, em tempo, mecanismos de recuperação de ativos, e paralisar o gasto de dinheiro em projetos que porventura estejam inquinados com práticas fraudulentas. O Colégio da Procuradoria Europeia, de que faço parte, e que define a estratégia da instituição, criou um órgão designado pelo acrónimo ARMLAB (Asset Recovery and Money Laundering Board), para atuação em investigações financeiras e para recuperação de ativos. E começam a ganhar corpo os resultados das nossas parcerias com algumas das Unidades de Informação Financeira (UIF) e os Gabinetes de Recuperação de Ativos. Em 2024, para um total de danos estimados de 24,8 mil milhões de euros nas nossas investigações em todo o espaço de atuação da Procuradoria Europeia, foram obtidas ordens de apreensão e de arresto no valor de cerca de 2,24 mil milhões de euros (cerca de 10%), um indicador de eficácia que pretendemos reforçar.

O número de investigações vai aumentar com o PRR?
Não tenho razões que me permitam dizer que em Portugal existem falhas nos mecanismos de certificação e auditoria das despesas com o PRR, por comparação com os dos outros países. Os dados de que disponho revelam um aumento de investigações em Portugal relacionadas com fundos europeus e contratação pública, em que se inclui naturalmente o PRR. Isto não prejudica a identificação do desfasamento de números que mencionei, comparando a realidade portuguesa com a de outros países.

Quais os riscos específicos que o PRR acarreta?
Não sendo atualmente o único instrumento financeiro de apoio da UE, comporta riscos de desvio de execução: tem dimensões de ação específicas (resiliência, transição climática e transição digital), métodos de medição próprios (comprovação de marcos e metas atingidos), uma estrutura de beneficiários que envolve entidades públicas, e é dotado de uma verba avultada, para Portugal superior a 22 mil milhões de euros (entre subvenções e empréstimos), com um calendário de execução financeira limitado no tempo. Assenta em lógicas de contratação e execução públicas que juntam aos comuns riscos de fraude os riscos inerentes a negócios públicos, com potencial criminoso em decisões públicas que violam a razão de ser do plano. Falo da possibilidade de conflito de interesses, corrupção e de outros crimes associados a esta realidade, que temos competência para investigar.

Qual é o ponto da situação dos processos de fraude que envolvem fundos comunitários a Portugal?
Em 2024, em Portugal estavam abertas investigação a 54 infrações relacionadas com fundos, contratação pública e corrupção (as infrações não correspondem ao número de inquéritos, uma vez que num inquérito é possível investigarem-se várias infrações). Para um total de 730 milhões de euros de danos investigados em Portugal, e retirados os valores sinalizados em fraudes em IVA intracomunitário (445 milhões de euros), os crimes de que estamos a falar envolvem perdas potenciais superiores a 250 milhões de euros, para 2024.

Estão relacionadas com que programas?
Os programas com maior incidência são os de desenvolvimento regional/coesão (17 infrações em investigação) e PRR (oito). Este retrato, com as proporções devidas, nos termos que já referi para outros países, alinha com os dados estatísticos de toda a zona de intervenção da Procuradoria Europeia. Todos os eixos do PRR são áreas de risco, como a globalidade das nossas investigações revela. Outra preocupação que a análise dos dados revela é a emergência de redes criminosas a operar neste tipo de fraude.

Quantas novas investigações
Portugal abriu?
Em 2024, abrimos 44 novas investigações e tínhamos um total de 69 investigações ativas. Em 2025, não é de excluir que possamos chegar a uma centena de investigações – um aumento que nos coloca em potencial colapso na capacidade de resposta, como a procuradora-geral europeia aliás transmitiu às tutelas da Justiça e das Finanças, quando esteve em Portugal.

Pode dar dois exemplos de duas grandes investigações que envolvem Portugal?
Portugal já demonstrou que faz um excelente trabalho. Liderou a maior investigação até hoje da Procuradoria Europeia, a investigação ‘Admiral’, com danos estimados atualmente em cerca de três mil milhões de euros. É um caso exemplar, que demonstra a mais-valia de um organismo como a Procuradoria Europeia. O crime transfronteiriço, quando atinge um nível de complexidade comparável ao observado na ‘Admiral’, é quase impossível de detetar a partir de uma perspetiva exclusivamente nacional. Tudo começou com uma suspeita de fraude ao IVA reportada pela Autoridade Tributária em Coimbra, em abril de 2021, relativa a uma empresa que vendia telemóveis, tablets e outros dispositivos eletrónicos. De uma perspetiva nacional, com base na investigação administrativa, a faturação e as declarações fiscais aparentavam a existência de uma anomalia exclusivamente fora de Portugal. No entanto, os procuradores europeus delegados portugueses decidiram aprofundar a investigação.

Como?
Trabalhando em conjunto com os colegas dos outros países membros da Procuradoria Europeia e com analistas e investigadores financeiros, estabeleceram ligações entre a empresa suspeita em Portugal e nove mil outras empresas localizadas em vários países, revelando em apenas ano e meio o que se acredita ser uma das maiores fraudes em IVA intracomunitário alguma vez investigadas na UE. E já obtivemos a primeira condenação em primeira instância dos acusados em Portugal, em maio deste ano, quatro anos depois de a primeira suspeita nos ser reportada.

Há outras investigações?
Mais recentemente, numa investigação com o nome de código ‘Ambrósia’, deduzimos acusação nos tribunais portugueses contra 30 arguidos, acusados de formar e operar uma associação criminosa responsável por uma fraude ao IVA que ascende a 35 milhões de euros, relacionada com produtos alimentares essenciais, incluindo azeite, óleo e açúcar.

Tem estimativas do valor das perdas anuais para os crimes relacionados com o IVA?
Confesso que foi uma surpresa deparar-me como a realidade revelada pelas investigações a IVA transfronteiriço. A Europol tem estimativas de perdas de 50 mil milhões de euros por ano em IVA não arrecadado em virtude de práticas fraudulentas, o que faz com que esta atividade criminosa seja particularmente rentável. Em 2024, as nossas investigações revelaram perdas potenciais de 13 mil milhões de euros, o que não abarca, obviamente, toda a realidade. Significa, no fim do dia, menos dinheiro para serviços públicos como saúde, educação ou segurança, e prejudica diretamente os cidadãos.

Continua a ser uma prioridade para a Procuradoria Europeia?
É uma prioridade por várias razões. Não existe setor de atividade que lhes seja imune. Dou como exemplo a investigação ‘Ambrósia’: os factos investigados envolviam a comercialização de produtos essenciais do cabaz alimentar, como açúcar e azeite. Deparamo-nos com redes criminosas que se dedicam a crimes graves, incluindo criminalidade violenta, e que usam estas práticas para branqueamento de capitais. Isto coloca o espaço europeu em risco de segurança, e mina os valores axiais da UE, como o mercado económico livre, assente na livre concorrência.

Tem sido suficiente a intervenção nacional na deteção de crime e fraude, nomeadamente ao IVA?
A nossa atuação de combate ao crime de IVA intracomunitário beneficia diretamente os orçamentos dos Estados, uma vez que a receita europeia de IVA é calculada sobre o valor do IVA por eles arrecadados. Nos dois casos portugueses que mencionei, ‘Admiral’ e ‘Ambrósia’, para perdas de IVA de 110 milhões de euros para o orçamento português, o esforço da Procuradoria Europeia permitiu medidas de recuperação de ativos no valor de cerca de 75 milhões de euros, algo que julgo não ter precedentes e que merece reflexão. O crime organizado, que escolhe sobretudo jurisdições frágeis para se estabelecer, coloca os países em possível vulnerabilidade para acolher este tipo de práticas. A AT está focada na dimensão sobretudo nacional de arrecadação de imposto. Esta lógica não capta a essência do problema das redes criminosas, necessariamente transnacionais, organizadas e perigosas.

Que conselho daria ao ministro das Finanças nesta área?
Em vários encontros que tive com elementos das autoridades tributárias estrangeiras, transmitiram-me que, com a investigação ‘Admiral’, foram identificadas alterações no padrão do comportamento criminoso, e que a Procuradoria Europeia mudou o jogo de forças. Se a autoridade tributária investir mais em meios de inspeção, e menos no apoio a investigações criminais, perdem-se ganhos de eficiência. Uma ação inspetiva que encerre uma empresa não impede que no dia seguinte se lhe sucedam várias dedicadas à mesma prática criminosa. Esta visão foi transmitida à tutela das Finanças.

Os portos nacionais são uma preocupação?
A volatilidade geopolítica permite antever que a fraude aduaneira assuma elevados riscos.
Identificamos nos nossos processos a violação de direitos anti-dumping, ou perdas de IVA na importação. Esta prática está instalada no espaço europeu e é usada por operadores oriundos, designadamente, da República Popular da China. Antevejo réplicas deste comportamento para outros países, no atual contexto político internacional.
Uma investigação da Procuradoria Europeia lançada na Grécia, com o nome de código ‘Calypso’, no porto de Pireu, destapou apenas parte do véu que cobre esta realidade.

Foram apreendidos mais de 2.400 contentores com bicicletas elétricas, calçado e têxtil oriundo da China, a maior apreensão de sempre deste tipo na União Europeia. Também foram apreendidos cerca de quatro milhões de euros em dinheiro vivo, num aparente esquema de corrupção de funcionários portuários. As perdas estimadas neste processo ascendem a 800 milhões de euros em direitos aduaneiros e IVA.
A importância geoestratégica de Portugal no tráfego marítimo de carga contentorizada, associada a uma perceção de fraca fiscalização por parte das autoridades tributárias, aconselharia uma abordagem estratégica a este fenómeno, o que foi igualmente transmitido à tutela das Finanças.

A procuradora-geral europeia Laura Kövesi esteve recentemente reunida com membros do Governo português. Foi abordado o tema da falta de meios que compromete eficácia portuguesa na Procuradoria Europeia. Quais são as dificuldades da equipa?
Portugal destacou-se no início do funcionamento da Procuradoria Europeia com o processo ‘Admiral’. As investigações europeias, nomeadamente na Letónia e na Grécia, foram desencadeadas pela portuguesa, que já foi concluída. Era crucial manter este nível de eficácia. A realidade com que lidamos é preocupante. É impossível uma gestão processual do nosso volume de trabalho com apenas seis procuradores europeus delegados. Nos processos ‘Admiral’ e ‘Ambrósia’, foi necessário constituir uma equipa de dois procuradores para cada, e o restante trabalho ou ficou paralisado, ou foi redistribuído pelos dois magistrados restantes.

Os procuradores europeus delegados asseguram a tramitação dos processos que lideram até ao trânsito em julgado, representando a Procuradoria Europeia em todas as instâncias, realidade a que nenhum magistrado português está sujeito. Além disso, participam e fornecem assistência em investigações altamente complexas lideradas por colegas estrangeiros que envolvem inúmeros países, o que não acontece habitualmente com os magistrados portugueses.

Em 2022 foram pedidos mais dois procuradores delegados em Portugal, aumentando para oito o número nacional? Já foi concretizado?
Obtivemos confirmação de que estará concluído o procedimento para indicação de um sétimo procurador europeu delegado. Mesmo com esta nova colocação, com a evolução dos nossos números, no final de 2025 a Procuradoria Europeia estará em piores condições do que as que vivia no final de 2024. E está em situação claramente deficitária em comparação com outros países. A Roménia, que tem um elevado grau de eficácia em processos concluídos, tem 20 magistrados. A Chéquia, com a mesma população que Portugal e um PIB semelhante, tinha, no ano passado, aproximadamente o mesmo número de investigações que as que provavelmente teremos até final do ano, contando, no entanto, com 10 procuradores europeus delegados, contra apenas 6 em Portugal.

Em relação às condições de apoio administrativo aos magistrados da Procuradoria Europeia, a situação de rutura foi abordada, e tanto quanto conseguimos perceber, estará em preparação um diploma que permitirá acomodar alguns dos impactos altamente negativos desta realidade. Aguardamos com urgência esta solução legislativa.

E ao nível da tramitação policial?
A este quadro junta-se um cenário de tramitação policial lentíssima de parte significativa das nossas investigações. A justificação que recebemos é a de que os meios que pré-existiam à criação da Procuradoria Europeia são os mesmos que agora se dedicam ao apoio das investigações conduzidas pela Procuradoria nacional e por nós. Não raras vezes são referidos critérios de prioridade de investigações nacionais, que considero poderem violar princípios de cooperação reforçada, leal e sincera. Este estado de coisas, a manter-se, apenas revelará em Portugal estruturas redundantes, com a perda de uma oportunidade de reforçar a arquitetura criminal anti-fraude. E não salvaguarda um valor de solidariedade na proteção de todos os cidadãos europeus e para com os Estados que estão a fazer uma aposta firme nesta instituição, e que ajudam as investigações portuguesas.

Cada Estado devia ter polícias dedicadas à procuradoria europeia, que trabalhassem apenas nesses processos? Estamos ainda longe de uma força policial transnacional?
Já existem agentes de polícia dedicados na Roménia, Bulgária, Itália e Espanha, onde as delegações de procuradores europeus delegados contam, aí, com corpos policiais dedicados, integrando em alguns casos peritos financeiros a trabalhar nas instalações dos magistrados. Os resultados desta abordagem estão espelhados no nosso relatório de 2024: nos países em que isto acontece, os resultados são francamente superiores.

São várias as razões pelas quais a procuradora-geral europeia continua a pugnar pela necessidade premente de termos corpos policiais dedicados: garantir o trabalho multidisciplinar em processos transnacionais com equipas estáveis, em que não raras vezes a barreira linguística é uma dificuldade; e a possibilidade de proporcionarmos treinos dedicados que melhorem a eficácia das investigações, altamente complexas e especializadas. Em crime financeiro, apenas equipas perseverantes, dedicadas e focadas conseguem realizar investigações atempadas e consistentes. Não é viável que um mesmo inspetor se divida em várias prioridades, numa área em que a sua capacidade analítica é o principal instrumento de trabalho.

Laura Kövesi lamentou também alguma falta de colaboração institucional entre organismos da UE. Como pode ser resolvido este problema?
As parcerias estabelecem-se por via do trabalho conjunto. A colaboração de todos os responsáveis pelo combate à fraude na UE é essencial para o seu reforço. Em 2024, de cerca de 6.500 participações recebidas, apenas 113 tiveram origem em entidades europeias, o que representa cerca de 1,7%. Estes números sugerem que o nível de deteção de fraude é inferior ao real. O grande constrangimento à nossa ação é a limitação orçamental, que nos impede de obter recursos humanos e técnicos necessários à dimensão de trabalho com que lidamos.

É diferente ser procurador europeu de ser procurador em Portugal?
Completamente diferente. Sou responsável pelo funcionamento das delegações da Procuradoria Europeia em Portugal, em Lisboa e no Porto, mas também monitorizo, e decido coletivamente, casos em que se aplica a lei criminal de 24 países. A interação constante com culturas judiciárias de outros países tem-me permitido refletir sobre outros modelos de trabalho, em alguns casos mais eficazes.

Qual é o balanço que faz do seu trabalho desde que foi nomeado procurador europeu em 2023?
Gostava de ver ultrapassadas as dificuldades com a escassez de recursos, o que permitiria à delegação portuguesa, que integra magistrados de excelência, apresentar um trabalho que traduza essa qualidade. Estamos a tentar ultrapassar todas as dificuldades, e por isso considero muito positivo o que já se conseguiu. Um dos grandes desafios desta posição é ter um plano de resiliência e perseverança.

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